15 maio 2009

O “MENINO” DE GRANDIS É BEM MAIS VELHO DO QUE PENSA E DO QUE PARECE

via VEJA.com: Blog | Reinaldo Azevedo de Reinaldo Azevedo em 08/05/09
O texto que vai abaixo refere-se a uma questão de extrema gravidade. Considero-o um dos mais importantes escritos em quase três anos de blog. Diz respeito ao futuro de cada um de nós e ao regime em que queremos viver. Trata-se de escolher entre democracia e ditadura.
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O procurador Rodrigo de Grandis, que atuou na Operação Satiagraha, é jovem. Tem 32 anos. Dia desses, um ex-jornalista que vende serviços na Internet chegou mesmo a perder o controle e a se comover com a sua "cara de menino". Em Menino do Rio, Caetano descobriu o "calor que provoca arrepio". No caso em questão, devia ser uma dessas comichões provocadas pelo particular entendimento que esse moço tem da Constituição. Hora de recuar um pouco mais nas referências.

São Paulo, o apóstolo, disse que, quando menino, pensava como menino. Uma vez homem, obrigava-se a pensar como homem — como adulto, bem entendido. De Grandis e sua rima imperfeita, De Sanctis, o juiz Fausto, têm um bom pretexto para algumas de suas meninices perigosas. O nome dele é "Daniel Dantas". O banqueiro continuará a ser "o" mal do Brasil — tem-se a impressão, às vezes, de que é o único — enquanto durar o governo do PT, que fornece o caldo de cultura ideal para o desenvolvimento de uma bactéria nefasta para o estado de direito: aquela gente que pretende fazer justiça a despeito da Justiça. Daniel Dantas virou o vilão que perdoa todos os pecados. E, ontem, o "procurador com cara de menino" foi muito além da conta, muito além do razoável, muito além das suas sandálias.

Cerco

Que fique registrado. A Justiça Brasileira está sob cerco. No STF, um ministro como Joaquim Barbosa acusa um desafeto de modo irresponsável e o aconselha a ouvir as ruas, como se elas fossem determinantes da Justiça — e não as leis. Ayres Britto, outro ministro da Casa, este também presidente do TSE, justifica que se dê posse a quem não foi eleito alegando que se trata apenas de uma medida de "menor extensão democrática". Um juiz de primeira instância, em flagrante desrespeito à lei, autoriza a invasão de escritórios de advocacia. Ontem, De Grandis, numa palestra, afirmou, com todas as letras e mais um pouco, que há, no Brasil, "um apego excessivo da jurisprudência à questão dos direitos e garantias fundamentais". Mais ainda: disse que isso "é fruto da época da ditadura militar".

Pobre "menino"!
Pobre Brasil!
Pobres brasileiros!

De Grandis conferia uma palestra, ao lado do delegado Ricardo Saadi, da PF, na Procuradoria Regional Federal de São Paulo. O tema: "Visão Brasileira na coleta de provas: êxitos, dificuldades e sugestões. Balanço quanto aos meios de investigação utilizados na Operação Satiagraha na ótica do Ministério Público Federal e da PF". Isso já não é uma palestra, mas uma dissertação resumida no título! Sigamos.

Assim como não sei o que é uma "solução de menor extensão democrática", não sei o que quer dizer "apego excessivo aos direitos e garantias fundamentais". Aos 32 anos, talvez o "menino" não tenha tido tempo de investigar o sentido das palavras — embora a idade não perdoe a tolice. Ou um direito é "direito" ou não é. Ou é "fundamental" ou não é. Ou é "direito fundamental" ou não é. Não existem nem apego excessivo nem apego precário. Ou se respeita o que está na Carta ou se faz como a rima imperfeita de De Grandis, o De Sanctis, e se diz que a Constituição "não passa de um documento".

Então ficamos assim:
- Joaquim Barbosa quer a voz rouca das ruas.
- Ayres Britto adota soluções de "menor extensão democrática".
- De Sanctis acha que a Carta é só um documento e diz que a Constituição é o povo.
- De Grandis inventa o apego "excessivo" aos "direitos e garantias fundamentais".

O "menino" estava mesmo impossível. Como vocês sabem, a bobagem sempre vem acompanhada da afronta à lógica elementar. Segundo o rapaz, a responsável por esse "apego excessivo aos direitos e garantias fundamentais" é a ditadura. Ele estava querendo dizer que, ao combater o regime militar, desenvolvemos essa, sei lá como chamar, "mania" de "direitos e garantias fundamentais". Deixe-me ver se entendi o raciocínio do grande: ENQUANTO TÍNHAMOS DITADURA, AFERRAMO-NOS A ESSAS DUAS QUESTÕES QUE, VOCÊS SABEM, SÃO O CERNE DA DEMOCRACIA. AGORA QUE TEMOS DEMOCRACIA, SERIA PRECISO ABANDONÁ-LAS, DE SORTE QUE, ENTÃO, A DEMOCRACIA NOS TIRARIA AQUILO QUE NEM A DITADURA NOS TIROU. Coisa de gênio.

Juventude nunca é problema. Ignorância sempre é. Essa rapaz não sabe o que é sair à rua com receio de ser levado por gente que não dá muita bola para "garantias e direitos fundamentais". Não sabe porque outros haviam feito o devido trabalho de conquistá-los, enquanto ele apenas exercia o direito se borrar as fraldas.

Não! De Grandis não é tão "menino" que possa borrar a Constituição. De fato, as suas idéias nada têm de jovens. São até muito antigas. Vêm das catacumbas do estado ameaçando os direitos individuais; vêm das ditaduras; vêm das tiranias; vêm dos estados totalitários fascistas ou comunistas; vêm do mundo das sombras. As idéias de De Grandis, nesse caso, são tão velhas quanto os demônios. Ele percorreu caminhos ainda mais perigosos. Disse, por exemplo, que a Constituição assegura uma série de direitos e garantias fundamentais, mas também determina a proteção de deveres fundamentais.

De Grandis conseguiu estabelecer uma relação de oposição entre "direitos fundamentais" e "deveres fundamentais". Onde a boa doutrina sempre pôs um conectivo — "direitos E deveres" —, ele resolveu meter uma conjunção adversativa — "mas" —, como se o exercício de um roubasse um tanto do domínio do outro. Ora, sr. De Grandis, se existe "apego excessivo aos direitos", então existe também "apego (ou imposição) excessivo (a) de deveres". Ocorre que o "dever excessivo" não é dever, mas arbitrariedade, e o "direito excessivo" não é direito, mas privilégio inaceitável. Essa oposição inexiste nas democracias. O estado de direito, "menino", é o estado regido pelas leis, não pela vontade justiceira.

Não, senhores! Isso nada tem a ver com Daniel Dantas. Isso tem a ver com civilidade. Os justiceiros das favelas também acham que há, no Brasil, um "apego excessivo aos direitos e garantias fundamentais". SERÁ QUE, AO CRIME DO COLARINHO BRANCO, VAMOS AGORA OPOR OS JUSTICEIROS DO COLARINHO BRANCO — eventualmente da toga preta?

De Grandis, insaciável, deixou claro que enxerga a existência de um movimento que converge para o seu ponto de vista. Segundo diz, esse "apego excessivo aos direitos e garantias fundamentais" ainda resiste no Supremo, mas já começa a fraquejar no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais. De Grandis nos informa, então, que, no STJ e nos TRFs, "direitos e garantias fundamentais" já não são tão fundamentais assim. E, se não são, então não são nem "direitos" nem "garantias".

Devemos, pois, estar preparados para cruzar com um discípulo de Joaquim Barbosa que, antes de tomar uma decisão, vá tomar a temperatura das ruas. Ou com um seguidor de Ayres Britto que, ao decidir o nosso destino, considere com doçura: "Sei que se trata de uma solução de menor extensão democrática, mas fazer o quê?" Ou com um aprendiz de De Sanctis, que, dando de ombros para aquele "papel", decrete: "A verdadeira Constituição é o povo, e o povo quer tal coisa". Ou com um De Grandis mentalmente ainda mais jovem que bata o martelo: "Direitos e garantias fundamentais? Isso era coisa do tempo da ditadura".

Sob o pretexto de caçar Daniel Dantas, essa gente está querendo jogar no lixo as instituições democráticas. Sob o silêncio cúmplice de importantes setores da imprensa, da própria Justiça e das entidades de classe ligadas aos advogados. Não por acaso, De Grandis acha que o tal "apego excessivo" vem de um tempo em que lutávamos contra a ditadura. Ele tem razão. Só mesmo o "apego excessivo a direitos e garantias fundamentais" nos livra das ditaduras. Ou se fica com eles ou se fica com elas.

O "menino" parece já ter feito a sua escolha.

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09 maio 2009

LULA: A NOVA TRADIÇÃO

via VEJA.com: Blog | Reinaldo Azevedo de Reinaldo Azevedo em 05/05/09
O ciclo de escândalos do Congresso parece que ainda não terminou, e o foco agora se desloca, uma vez mais, para o Senado. E assim caminhamos, ora numa concha, ora na outra, mas sempre com o Legislativo à beira da desmoralização, enquanto o Executivo governa como quer. Quem retratou bem o espírito do tempo, como não poderia deixar de ser, foi ele, "O Cara", o Apedeuta da Silva.

Resumiu a onda de críticas de que vem sendo alvo o Congresso como "hipocrisia". E disse que assim se faz há mais de 40 anos. E admitiu que deu passagens para sindicalistas quando era deputado. Nem era necessário tal rasgo de sinceridade tão pretérita. Teria bastado ser sincero no presente: dá um avião inteiro de presente para um filho levar os amigos para o Palácio — coisa que Maria Victoria Benevides (aquela que fica nervosa quando lê a palavra "ditabranda") julgou estar fora do alcance da Comissão de Ética Pública, que ela presidia — e vê a empresa do outro rebento receber uma injeção de R$ 10 milhões de uma concessionária de serviço público, de que o BNDES é sócio.

Uma geração — na verdade, duas — de sociólogos das universidades brasileiras se perdeu tentando explicar a "novidade" que o PT representaria na política brasileira. Lula foi mais sintético e exato do que todos eles — sejamos francos: ele nunca foi com a cara dos intelectuais e sempre os desprezou solenemente. No mais das vezes, fez um bem a si mesmo e ao país, diga-se.

Aquele discurso ideológico que tanto encantava os doutores do radicalismo, Lula o definiu como "bravata". O discurso "denuncista", que fez do PT suposto porta-voz da "ética na política", tornou-se agora "hipocrisia". O que mudou de um tempo para o outro? Simples: Lula passou a ser beneficiário dos usos e costumes aos quais supostamente se opunha. Mas também inaugurou a sua própria tradição de desmandos. Por razões que jamais suspeitaram, os talebans uspianos estava certos: o PT realmente inovou.

Ah, quantos tratados se escreveram e ainda se escrevem nas universidades brasileiras demonstrando que a "direita" e os "conservadores" tornaram "naturais" as diferenças "sociais". Essa suposta "naturalização" da desigualdade seria um dos truques mais visíveis da Dona Zelite para conservar o poder. A patronesse dessa acusação, entre nós, é Marilena Chaui, mas a fala está em toda parte — no jornalismo, então, é mais freqüente do que errar a conjugação do verbo "ver" no futuro do subjuntivo. Lula, o "intelectual orgânico" — e reciclável — de sua classe não agiu como as antigas elites, não. Ele "naturalizou" a lambança e, por extensão, a corrupção. Pronto! Agora é traço do nosso caráter. Para Lula — o homem que viria mudar "tudo isso que está aí" —, a lambança no Congresso (e no Brasil) sempre foi e sempre será assim.

Muitos criticaram a fala presidencial. Mas, com efeito, nem todos criticam o lulo-petismo da mesma forma. Remanescentes ou herdeiros de certo pensamento de esquerda, sobretudo no jornalismo — eu disse "pensamento"; tirem o PSOL daqui, por favor —, pretendem que este Lula que aí está representa uma espécie de traição ou de variação teratológica do pensamento "progressista" — nem me perguntem o que eles acham que o Apedeuta deveria estar fazendo para não ser, então, um traidor. Lula teria, em suma, se acomodado ao velho patrimonialismo.

A acomodação aconteceu, claro. Mas é injusto não reconhecer que ele inovou a tradição e encarna, também, uma ruptura. De fato, expressões daquela tal "Zelite" continuam a capturar o estado, mas a mediação que importa é outra. Se, no velho modelo, os intermediários da transferência do público para o privado eram os políticos da "burguesia" ou da classe média, os novos mascates que negociam a coisa pública vêm dos sindicatos e das corporações. De fato, reformar a sociedade naquele velho modelo não era tarefa fácil. Na sociedade estamental-petista, a tarefa se mostra quase impossível. Porque esse modelo lulo-petista aniquilou também a crítica.

A imprensa é um bom exemplo de rendição — com as exceções de sempre. De fato, há certa fúria seletiva com o Legislativo (o "Velho Brasil) na exata medida em que há condescendência com o Executivo (o novo Brasil de Lula). A severidade, num caso, não é necessariamente evidência de severidade com a coisa pública. Imaginem um governo tucano ou democrata que retomasse um licitação da década de 80 para tocar Angra 3. E imaginem o dono da construtora como o maior financiador individual da campanha do presidente. Haveria um escarcéu. Seria um pandemônio. Por aqui, tudo está sendo encarado com, lá vai a palavra, "naturalidade".

Lula inovou: ele funda uma nova dinastia patrimonialista: a sindical. E é ela que está no centro do poder agora — daí eu me incomodar com essa tese de que o Apedeuta da Silva apenas reciclou o antigo. Ele representa, de fato, uma inovação. Os velhos atores, como vocês notam, são apenas base de apoio do lulismo e nem mesmo ambicionam um vôo próprio. Lula inaugura uma tradição. E esse novo patrimonialismo, que permite à máquina sindical assenhorear-se do que é público e tratá-lo como coisa privada, conta com a simpatia de amplos setores da imprensa e do pensamento no Brasil.

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