15 abril 2013

Marcados descompassos


por Pedro S. Malan, publicado no Estadão de 14.04.2013
O Brasil é um país extraordinário em sua rica diversidade e enorme potencial, mas é também um país complexo de entender e difícil de administrar - como cedo ou tarde percebem aqueles que se dispõem a fazê-lo. Há custos de aprendizado, que levam os governantes a um gradual reconhecimento da existência dos limites do possível às suas ações no relativamente curto prazo de seus mandatos.

O fato é que no Brasil de hoje convivem, em mutante simbiose, partes modernas (que adquiriram expressão relevante) e partes anacrônicas (que não podem ser subestimadas). E talvez por isso, o Brasil não comporta mais variantes de messianismos salvacionistas, voluntarismos extremados e improvisados exercícios de autoridade. Mesmo quando o governo tem popularidade e exibe avassaladora maioria no Congresso Nacional - embora exigindo complexas concessões da parte do Executivo.

Na raiz desse aparente paradoxo está uma questão de fundo colocada com a clareza habitual por José Murilo de Carvalho: "A construção de uma democracia sem República me parece pouco viável. República significa coisa pública, virtude cívica (...), exige predomínio da lei, igualdade perante a mesma, ausência de privilégios e hierarquias sociais, cidadãos ativos, governos responsáveis e eficientes (...). República é incompatível com patrimonialismo, clientelismo, nepotismo e fisiologismo".

Escreve o autor: "Pode-se argumentar, como muitos fazem, que nossa democracia não precisa de República, que aos trancos e barrancos vamos construindo a inclusão política e social, e que preocupação com honestidade política, bom governo, valores cívicos e instituições respeitadas é moralismo pequeno-burguês". Mas - como José Murilo - espero que possa haver um número crescente de brasileiros que discordem dessa postura.

"Os eleitores é que dirão", essa é a aposta (legítima) que fez o governo ao se lançar com armas e bagagens e antecedência de quase dois anos na campanha de sua reeleição. Com a convicção de que esses eleitores votarão com o bolso. E que, portanto, os altos níveis de emprego e a evolução da renda disponível das famílias decidiriam por antecipação as eleições do ano que vem. Como disse um ministro em campanha, "para o povo, PIB é emprego e renda", ou seja, o que conta é o crescimento da renda real das famílias nos períodos que antecedem à eleição. O resto seria o resto, de menor importância relativa para aqueles que estão com os olhos ora fixados apenas no resultado de outubro de 2014.

Pois bem, o resto não é o resto. Paul Krugman, o influente Prêmio Nobel de Economia, tinha e tem toda a razão ao escrever, já lá se vão mais de duas décadas: "A capacidade que tem um país de melhorar os padrões de vida de sua população ao longo do tempo depende quase que inteiramente (almost entirely, no original inglês) de sua capacidade de aumentar o seu produto por trabalhador" - isto é, a produtividade de sua economia.

Como bom economista, Paul Krugman nota que isso exige capital, trabalho, tecnologia e inovação. E também discute por que a ideia de produtividade, por ser tida como complexa, não é fácil de ser levada à arena política e ao debate público. Mas insiste com a frase famosa, após analisar cinco maneiras de aumentar o consumo por habitante de um país (qualquer que seja): "A produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo".

Em pesquisa recente, ainda por publicar, Regis Bonelli e Julia Fontes retomam o tema krugmaniano da sustentabilidade ao longo do tempo de marcados descompassos entre intenções de gasto em consumo e restrições de oferta derivadas de problemas de baixa produtividade. Os autores adotam uma perspectiva de longo prazo (de 1980 a 2010, com projeções tentativas para 2010-2020), com especial atenção conferida à nossa extraordinariamente rápida transição demográfica.

Regis Bonelli e Julia Fontes mostram que nosso crescimento futuro estará ainda mais dependente de aumentos de produtividade e, simultaneamente, ainda mais limitado pelos efeitos de nossa nova demografia sobre a oferta de trabalho. Como já se disse, o Brasil está correndo o risco de ficar velho antes que chegue aos níveis de renda per capita próximos dos que desfrutam hoje os países desenvolvidos.

Mas a economia brasileira enfrenta hoje outros descompassos que não são de tão longo prazo, embora não menos relevantes para o nosso futuro: as intenções de gasto doméstico - público e privado, em consumo e investimento - excedem em muito a capacidade doméstica de atendê-las, dadas as intenções de poupança pública (que é negativa) e de poupança privada (que é relativamente reduzida).

O resultado dos processos de ajuste a este descompasso é sempre - ex-post - uma cambiante combinação de pressões inflacionárias, déficits de balanço de pagamentos em conta corrente (expressando a necessidade de poupança externa) e, quando existe financiamento, endividamento adicional de famílias e do governo. Este descompasso ex-ante, quando significativo e prolongado, afeta as expectativas quanto ao curso futuro do câmbio, dos salários e dos juros - e, portanto, do investimento e do crescimento futuro.
Nos próximos 19 anos de vida do Real, nós teremos nada menos do que cinco eleições presidenciais: 2014, 2018, 2022, 2026 e 2030. E uma eleição presidencial é sempre, talvez, uma oportunidade para que o País possa tentar aprofundar e melhorar a qualidade do debate público informado sobre crescimento, emprego e renda, com foco na imperiosa necessidade de aumentar, em muito, a produtividade e a competitividade internacional de suas empresas e a eficiência operacional do governo na gestão da coisa pública - aí incluídos os investimentos em infraestrutura e na melhoria da qualidade da educação, áreas nas quais há ainda muito, mas muito mesmo, o que fazer nos anos à frente.
* Economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso. E-mail: malan@estadao.com.br

12 abril 2013

Dilma e os 40 ministros


por Fernando Gabeira, no Estadão de 12/04/2013
É muito difícil fazer a revolução, é muito difícil vencer, mas as dificuldades mesmo começam quando se chega ao governo - essa frase é de um personagem do filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Sempre me interessei pelo tema na literatura que descreve as transformações na cabeça das pessoas que alcançam o poder. O personagem de Pontecorvo referia-se a uma guerra de libertação nacional contra o colonialismo francês, algo muito mais dramático do que a vitória da esquerda brasileira em 2002.

Minha experiência no Brasil me leva a ressaltar um ponto decisivo na corrosão dos objetivos estratégicos - quando existem - dos vencedores de uma luta prolongada: o desejo patético de continuar no poder, desde o primeiro dia em que nele se instalam. A contradição entre o discurso modernizador e as atitudes do governo fica muito mais clara no período eleitoral, embora exista todo o tempo.

Dilma Rousseff convidou o empresário Jorge Gerdau para colaborar na racionalização administrativa do governo. Gerdau foi decisivo na modernização do governo do Estado do Rio de Janeiro. Temos uma dívida de gratidão com ele, que investiu dinheiro do próprio bolso no projeto. O único efeito colateral dessa operação bem-sucedida foi o aumento do prestígio do governador Sérgio Cabral. Nada de muito grave que não pudesse ser anulado com uma noitada em Paris, a bajulação do dono da Delta, guardanapos amarrados na cabeça e as mulheres exibindo os sapatos Christian Louboutin como se dançassem um passo de cancan.

Apesar de todo o trabalho de Gerdau, Dilma criou mais ministérios. Oficialmente temos 39. Com o marqueteiro João Santana funcionando como ministro especial, podemos chamá-los de a presidente e seus 40 ministros. A racionalidade foi para o espaço porque existe apenas o patético desejo de continuar no poder.

Como se não bastasse, Dilma resolveu prolongar a redução do IPI dos carros até o fim do ano. Qualquer pessoa sensata que ande pelas ruas das metrópoles brasileiras sabe que estamos chegando ao limite e a falta de mobilidade urbana é um grande desafio à produtividade nacional. Isso para não mencionar os portos, como o de Santos, com filas quilométricas de caminhões. Não conseguimos exportar nossa produção com fluidez, a mercadoria adormece no asfalto. E quando importada de avião não consegue ser liberada pela burocracia.

É surpreendente como uma esquerda que se inspirou no marxismo, mesmo sem o ter lido bem, com raríssimas exceções adota o caminho irracional com tanta naturalidade. Falando com um americano do setor de petróleo, ele se mostrou perplexo com a decisão da Petrobrás de comprar uma refinaria em Pasadena, nos EUA. O equipamento é superado, custou alguns milhões de dólares mais do que valia e nos deixou com o mico nas mãos. Não posso afirmar que essa irracionalidade esteja ligada às eleições, assim como a tentativa de entregar ilhas do patrimônio nacional ao ex-senador Gilberto Miranda. Mas se alguém ganhou dinheiro com o negócio desastroso, os dólares têm toda a possibilidade de aparecer nas campanhas.

Muitos gostam de enriquecer, comprar imóveis em Miami, alugar aviões, etc... Mas o dinheiro da campanha é sempre sagrado: the show must go on. Isso num contexto geral mais obscuro, em que eleitoralmente é possível saber quem ajuda o governo, mas, pelo fechamento do BNDES, é impossível saber quem o governo ajuda.

O trânsito para a total irracionalidade é mais nítido na esquerda venezuelana, que usa o mesmo marqueteiro do PT. Num dos anúncios criados por Santana, Hugo Chávez aparece no céu encontrando-se com Che Guevara, Simón Bolívar. Nicolás Maduro, o candidato chavista, vai mais longe: afirma que o comandante Chávez reaparece em forma de passarinho quando se reza por ele. Breve teremos passarinhos trinando nos campos verdes, a encarnação de Chávez protegendo nosso sono, aconselhando-nos nos dilemas cotidianos e, claro, batendo pesado na oposição.

Como foi possível sair da leitura de Marx para um realismo fantástico de segunda categoria? Como foi possível do caldo das teses de Marx sobre Feuerbach, mostrando a origem social do misticismo, ou do tempero de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a crença de que exista um canto no céu onde se encontram os ícones da esquerda latino-americana e que eles viram passarinho para nos indicarem o caminho da libertação? Mesmo sem parecer muito inteligente, não creio que Maduro leve a sério essas histórias da transfiguração de Chávez.

No caso de Lula, posso falar com mais propriedade. Ao nomear Dilma a mãe do PAC, houve uma nítida inflexão em suas ideias sobre o mundo. Lembro-me de que em 2002, na Caravana da Cidadania, ao visitarmos São Borja, onde Getúlio Vargas está enterrado, Lula hesitou em levar flores ao seu túmulo. "Não seria fortalecer um populismo desmobilizante?", perguntou. Certamente Lula não acredita que a sociedade democrática seja uma réplica da família, na qual os governantes fazem o papel dos pais e os eleitores, de filhos obedientes.

A verdade é que a esquerda no poder deixou para trás muitas convicções. Oscila entre o paternalismo e o misticismo religioso. Suas fontes não são apenas as religiões de origem cristã. Inconscientemente, já pratica o vodu, sobretudo a ouanga, um feitiço para envenenar simbolicamente os adversários por intermédio de seus sacerdotes eletrônicos. Não percebe que o destino final de seu sonho de poder é a criação de uma nação de zumbis, manipulando gadgets, povoando supermercados, mentalmente mortos por falta de oxigênio no cérebro.

Em vez de avançar por meio da prática e da autocrítica, de aprender com os próprios erros e contribuir para o alargamento do horizonte intelectual, a esquerda em alguns países latino-americanos optou pelo atraso e pela superstição simplesmente porque tem pavor de perder o governo, como se não houvesse vida fora dele. Assim, uma jovem rebelde dos anos 60 se transformou na Mãe Dilma, apoiada pelo Pai Lula, e seu 40.º ministro produz filmes sobre a esquerda no céu para os herdeiros de um passarinho chamado Chávez.
* Fernando Gabeira é jornalista.

04 abril 2013

Pela desigualdade



O ponto de partida é o seguinte: as crianças estão com dificuldades para alcançar a plena alfabetização no primeiro ano, ou seja, aos sete anos. Além disso, há um número expressivo de reprovações nesse primeiro ano, justamente por causa do atraso em leitura e redação.
Qual a resposta da autoridade educacional?
É fácil: eliminar a reprovação — todos passam automaticamente — e, sobretudo, fixar como meta oficial que a alfabetização deve se completar no segundo ano, quando a criança estiver fazendo oito anos. Em resumo, dar um período a mais para aprender a ler e escrever.
Não, não se passa no Brasil. Está acontecendo na Costa Rica. Mas, no Brasil, está, sim, em andamento o programa Alfabetização na Idade Certa, sendo esta também definida aos 8 anos.
A Costa Rica é o melhor país da América Central e considerado de bom padrão educacional. De fato, no teste Pisa, aplicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico em alunos de 15 anos, de 70 países, a Costa Rica obteve 443 pontos em leitura, ficando na 44ª. posição. Na América Latina, só perde para o Chile, cujos alunos alcançaram um pouco mais, 449 pontos. O Brasil está pior, 412 pontos nesse quesito.
Os cinco primeiros colocados são os alunos de Xangai, Coreia do Sul, Finlândia, Hong Kong e Cingapura, com notas entre 526 e 556. Pois nesses países a idade certa para alfabetização é seis anos. Isso mesmo, dois anos antes das metas de Brasil e Costa Rica. A questão é: quando e por que se precisa de mais tempo?
Na Costa Rica, onde a reforma educacional ainda está em debate, há dois tipos de argumentos, um referente ao calendário escolar, outro propriamente pedagógico.
No calendário: o problema, dizem autoridades, é que há muitos feriados e muitos períodos de férias, de modo que o ano letivo não passa de seis meses. Se as crianças vão menos dias à escola, claro que aprendem menos.
O leitor pode ter pensado: mas não seria o caso de aumentar o número de dias letivos?
Para os políticos, nem pensar. Criaria uma encrenca danada com professores e outros funcionários do sistema.
Já o argumento pedagógico diz que não se pode forçar uma criança de sete anos, que se deve deixá-la seguir segundo suas necessidades e seu próprio ritmo.
Quem acompanha o debate educacional no Brasil já ouviu argumentos semelhantes. Por exemplo: no programa Alfabetização na Idade Certa não foram introduzidos padrões que permitam medir se a criança sabe ou não ler. Seria possível fazer isso, uma medida numérica? Sim, já se faz pelo mundo afora. Em Portugal, por exemplo, no primeiro ano, o aluno deve ler em um texto simples, 55 palavras por minuto; no ano seguinte, 90 e, no terceiro ano, 110.
Simples, objetivo, de fácil avaliação.
Não é só no Brasil, mas em praticamente toda a América Latina esse tipo de avaliação causa até uma certa ojeriza. Entre professores, aqui, é forte a rejeição a avaliações concretas, como, por exemplo, um teste nacional que meça a capacidade dos mestres várias vezes ao longo da carreira. Médicos e advogados também não querem fazer as provas profissionais.
Tudo considerado, ficamos com as metas pouco ambiciosas. Pode-se argumentar que seria, digamos, romântico colocar como meta a alfabetização aos seis anos no Brasil. Se um número expressivo de jovens é classificado como “analfabeto funcional” depois do ensino médio, como querer que todos aprendam a ler e escrever aos seis anos?
Um equívoco, claro. Não há razão alguma para não fixar para os que entram agora na escola as metas mais rigorosas e adequadas aos padrões internacionais.
Há também uma questão política, que tem a ver com o desempenho dos governos: metas mais largas são mais fáceis de atingir e, claro, de propagandear.
Isso reflete uma cultura — a de evitar o problema, escolher o desvio mais fácil e politicamente mais vendável. Se as crianças não estão aprendendo na idade certa, se dá mais tempo a elas, em vez de tentar melhorar o processo de alfabetização. E, avançando, se os alunos das escolas públicas não conseguem entrar nas (ainda) boas universidades públicas, abrem-se cotas para esses alunos, muito mais fácil do que melhorar o ensino médio.
Dizem: o problema é que as universidades públicas estavam sendo ocupadas pelos alunos mais ricos vindos do ensino médio privado. Falso. O problema não está nas boas escolas privadas, está na má qualidade das públicas. Melhorar estas seria a verdadeira política de igualdade.
A propósito: nas boas escolas privadas, as crianças já sabem ler e escrever bem aos seis anos.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista


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