26 junho 2013

Como tratar os professores profissionais


CLÁUDIO DE MOURA CASTRO, NO ESTADÃO DE 26/06/2013 *

Afirmou categoricamente o diretor de uma das melhores escolas de Desenho Industrial, na Suíça: "Aqui não temos profissionais do ensino. O que temos são profissionais que ensinam". Na escola de artes plásticas da Corcoran Gallery, em Washington, apenas artistas com ateliês estabelecidos e operando comercialmente podem candidatar-se para as posições docentes. O novo diretor do Media Lab do MIT nem sequer tem curso de graduação!
Nas boas universidades do mundo, é consagrada a prática de usar acadêmicos para ensinar nas áreas científicas e nas humanidades. Em contraste, as disciplinas profissionais devem ser ensinadas por profissionais.
Nas nossas terras, Érico Veríssimo só conseguiu ser professor de Literatura nos Estados Unidos, pois não tinha os diplomas exigidos aqui. Jacques Klein nunca foi convidado para ensinar piano em nenhuma universidade, pois, apesar de ser o maior pianista brasileiro, tampouco tinha os diplomas. Se Pelé fosse professor de futebol, o curso dele seria penalizado na avaliação, pois só tem o bacharelado.
Numa época em que quase não havia pós-graduação e, portanto, nem mestres nem doutores, fazia muito sentido criar incentivos robustos para estimular instituições e futuros professores a investirem em diplomas pós-graduados.
Mas é a velha história do pêndulo. Ora vai demais para um lado, ora volta para o outro. No momento, atingimos um paroxismo de diplomite. Esquecemos que diploma é um recibo de conhecimento, mas não pode virar o monopólio do saber. Mais ainda, há áreas em que o conhecimento não está nos diplomas, mas na experiência vivida no local de trabalho. Nelas, exigir diploma é quase uma garantia de falta do conhecimento prático que é o cerne do desempenho. De fato, sendo jovem a pós-graduação, não houve tempo para que muitos mestres e doutores adquirissem conhecimentos práticos. Com o regime de dedicação exclusiva, só podem adquiri-la se, ao longo da carreira docente, contrariarem a lei.
É hora de empurrar o pêndulo de volta para o centro. O folclore universitário está recheado de casos grotescos de profissionais consagrados substituídos por jovens doutores sem quaisquer distinções, além do diploma. Faz tempo, substituíram um professor com um reles bacharelado por um recém-doutor. A se notar, defenestraram o grande arquiteto Sérgio Bernardes.
Nunca aponho letrinhas ao meu nome, mas abro exceção, para demonstrar que não advogo em causa própria.
Como se contrapor ao furor e à máfia dos diplomados? O conserto é simples: Enquadram-se como equivalentes a especialista, mestre ou doutor pessoas com experiência profissional apropriada e ensinando aquelas disciplinas profissionais que correspondem a ela. Por exemplo, um compositor, um arquiteto, um advogado e um engenheiro que trabalham na área que ensinam deverão ser classificados como especialistas, mestres ou doutores. Isso, para efeitos de credenciamento, de salários ou de ocupar posições administrativas no departamento.
Igualmente necessário é que o MEC reajuste as suas avaliações, seja da graduação ou da pós-graduação. Hoje, as instituições são punidas com notas mais baixas por contratarem quem tem experiência, em vez de doutores que jamais trabalharam no assunto do curso. Sem mudar esse critério perverso, nada feito.
É inevitável que um profissional requisitado e valorizado no mercado seja um professor horista. Portanto, as avaliações não devem penalizar a instituição que contrata profissionais experientes nesse regime. Nessas disciplinas, valem mais algumas horas de aula do engenheiro consagrado do que o tempo integral do jovem doutor que jamais fez um projeto de verdade.
Atualmente, um professor sem pós-graduação ensinando Cálculo 1 penaliza a avaliação do curso. O certo é que um doutor sem experiência na sua disciplina profissionalizante deveria também reduzir a nota.
Não estou propondo a criação de um enquadramento honoris causa ou notório saber, por envolver um rito pesado, já que são critérios de exceção. Aqui tratamos de regras que deveriam ser comuns e correntes para muitas disciplinas.
Sugiro tratar como equivalentes ao de um pós-graduado os profissionais que têm experiência de trabalho na área da disciplina. Deve enquadrar-se como pós-graduado um engenheiro de sistemas, trabalhando na IBM, em redes de computação e ensinando esse mesmo assunto. Um compositor consagrado poderá ser considerado equivalente a um doutor.
Um engenheiro siderúrgico da Usiminas teria uma experiência profissional superior em densidade tecnológica à do encarregado de um alto forno em Itaúna. Um engenheiro da Microsoft seria mais experiente em sistemas operacionais do que alguém que trabalha na informática da prefeitura. O repertório técnico de um cardiologista do Einstein é mais amplo do que o de um médico que trabalha num hospital do interior.
Como sugestão, cinco anos de experiência na área do curso a ser ensinado seriam o mínimo para uma equivalência a mestre ou especialista. Para equivalência a doutor, pelo menos dez anos. Quanto mais sofisticado ou complexo o trabalho na empresa, mais elevada a equivalência. Quanto mais denso o nível tecnológico da empresa, mais alta seria a competência do candidato.
Esse enquadramento seria feito por comissões tripartites, formadas de profissionais da área, acadêmicos e representantes de empresas. Seria mais prático que as próprias Instituições de Ensino Superior (IES) tivessem suas comissões, fazendo o enquadramento do candidato e justificando o seu parecer. Caberia ao MEC apenas ratificar as recomendações.
Não há razões para crer que o ensino privado tenha interesse em inflacionar o currículo de algum professor, pois, quanto mais alto o classificarem, mais terão de pagar. E profissionais consagrados na área não são mais baratos do que jovens doutores.
* CLÁUDIO DE MOURA CASTRO, M.A., PH.D., É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO. 

02 junho 2013

BEIJAR A CRUZ

por FERNANDO HENRIQUE CARDOSO * - O Estado de S.Paulo, em 02.06.2013

Já passou da hora de o governo do PT beijar a cruz. Afinal, muito do que ele renegou no passado e criticou no governo do PSDB passou a ser o pão nosso de cada dia da atual administração. A começar pelos leilões de concessão para os aeroportos e para a remodelação de umas poucas estradas.
No início procuravam mostrar as diferenças entre "nós" e "eles", em seu habitual maniqueísmo. "Nossos leilões", diziam, visam a obter a menor tarifa para os pedágios. Ou, então, afirmavam: nossos leilões mantêm a Infraero na administração dos aeroportos. Dessas "inovações" resultou que as empresas vencedoras nem sempre foram as melhores ou não fizeram as obras prometidas. Pouco a pouco estão sendo obrigados a voltar à racionalidade, como terão de fazer no caso dos leilões para a construção de estradas de ferro, cuja proposta inicial assustou muita gente, principalmente os contribuintes. Neles se troca a vantagem de a privatização desonerar o Tesouro pela obsessão "generosa" de atrair investimentos privados com o pagamento antecipado pelo governo da carga a ser transportada no futuro...
Ainda que renitente em rever acusações feitas no passado (alguns insistem em repeti-las), a morosidade no avanço das obras de infraestrutura acabará por levar o governo petista a deixar de tentar descobrir a pólvora. Já perdemos anos e anos por miopia ideológica. O PT não conseguiu ver que os governos do PSDB simplesmente ajustaram a máquina pública e as políticas econômicas à realidade contemporânea, que é a da economia globalizada. Tomaram a nuvem por Juno e atacaram a modernização que fizemos como se fosse motivada por ideologias neoliberais, e não pela necessidade de engajar o Brasil no mundo da internet e das redes, das cadeias produtivas globais e de uma relação renovada entre os recursos estatais e o capital privado.
Sem coragem para fazer autocrítica, o petismo foi pouco a pouco assumindo o programa do PSDB e agora os críticos do mais variado espectro cobram deste o suposto fato de não ter propostas para o Brasil... Entretanto, a versão modernizadora do PT é "envergonhada". Fazem mal feito, como quem não está gostando, o que o PSDB fez e faria bem feito, se estivesse no comando.
Agora chegou a vez dos portos. Alberto Tamer - e presto homenagem a quem faleceu deixando um legado de lucidez em suas colunas semanais -, na última crônica que fez no jornal O Estado de S. Paulo, Foi FHC que abriu os portos (17/2), recordava o esforço, ainda no governo Itamar Franco, quando Alberto Goldman era ministro dos Transportes, para dinamizar a administração portuária, abrindo-a à cooperação com o setor privado, pela Lei 8.630, de 1993. Caro custou tornar viável aquela primeira abertura quando eu assumi a Presidência. Foi graças aos esforços do contra-almirante José Ribamar Miranda Dias, com o Programa Integrado de Modernização Portuária, que se conseguiu avançar.
Chegou a hora para novos passos adiante, até porque o Decreto 6.620 do governo Lula aumentou a confusão na matéria, determinando que os terminais privados só embarcassem "carga própria". Modernizar é o que está tentando fazer com atraso o governo Dilma Rousseff. Mas aos trancos e barrancos, sem negociar direito com as partes interessadas, trabalhadores e investidores, sem criar boas regras de controle público nem assumir claramente que está privatizando para aumentar a eficiência e diminuir as barreiras burocráticas. Corre-se o risco de repetir o que já está ocorrendo nos aeroportos e estradas: atrasos, obras mal feitas e mais caras, etc. No futuro ainda dirão que a culpa foi "da privatização"... Isso sem falar do triste episódio das votações confusas, tisnadas de suspeição, e de resultado final incerto no caso da última Lei dos Portos.
A demora em perceber que o Brasil estava e está desafiado a dar saltos para acompanhar o ritmo das transformações globais tem sido um empecilho monumental para as administrações petistas. No caso do petróleo, foram cinco anos de paralisação dos leilões. Quanto à energia em geral, a súbita sacralização do pré-sal (e, correspondentemente, a transformação da Petrobrás em executora geral dos projetos) levou ao descaso no apoio à energia renovável, de biomassa (como o etanol da cana-de-açúcar) e eólica. Mais ainda, não houve preocupação alguma com programas de poupança no uso da energia. Enfim, parecem ter assumido que, já que temos um mar de petróleo no pré-sal, para que olhar para alternativas?
Acontece, entretanto, que a economia norte-americana parece estar saindo da crise iniciada em 2007-2008 com uma revolução tecnológica (de discutíveis efeitos ambientais, é certo) que barateará o custo da extração dos hidrocarburetos e colocará novos desafios ao Brasil. A incapacidade de visão estratégica, derivada da mesma nuvem ideológica a que me referi, acrescida de um ufanismo mal colocado, dificulta redefinir rumos e atacar com precisão os gargalos que atam nossas potencialidades econômicas ao passado.
Não é diferente do que ocorre com a indústria manufatureira, quando, em vez de perceber que a questão é reengajar nossa produção nas cadeias produtivas globais e fazer as reformas que permitam isso, se faz uma política de benefícios esporádicos, ora diminuindo impostos para alguns setores, ora dando subsídios ocultos a outros, quando não culpando o desalinhamento da taxa de câmbio ou os juros altos (os quais tiveram sua dose de culpa) pela falta de competitividade de nossos produtos.
As dificuldades crescentes do governo em ver mais longe e administrar corretamente o dia a dia para ajustar a economia à nova fase do desenvolvimento capitalista global (como o PSDB fez na década de 1990) indicam que é tarde para beijar a cruz, até porque o petismo não parece arrependido. Melhor mudar os oficiantes nas eleições de 2014.   
* SOCIÓLOGO,  FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA 

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