26 janeiro 2010

O mundo como ordem e reflexão

O mundo como ordem e reflexão: "

“Não se pode ser um acadêmico qualificado nos campos das ciências sociais e políticas sem conhecer profundamente o assunto”. A afirmação é óbvia? Quantos estão dispostos a trabalhar arduamente para “adquirir o conhecimento comparado das civilizações — não apenas da civilização moderna, mas também da medieval e da antiga, e não apenas do Ocidente, mas também do Oriente Próximo e do Extremo Oriente — e, em contacto com as diversas especializações científicas, manter atualizado esse conhecimento”?


As duas frases reproduzidas no parágrafo anterior são uma síntese de como o filósofo alemão Eric Voegelin respeitava o que fazia. A exata dimensão só pode ser avaliada por quem leu (ou pretenda ler) suas obras, mas há uma valiosa introdução: Reflexões autobiográficas é um livro estimulante no qual podemos conhecer o intelectual que:


a) para desenvolver uma teoria política que servisse à análise das ideologias foi investigar as filosofias clássica e cristã;


b) para elaborar uma história das ideias descobriu a necessidade de não limitar seu início na filosofia grega clássica, mas de voltar aos impérios do Antigo Oriente Próximo;


c) para construir uma teoria baseada em conceitos próprios de ordem e história (e suas relações) desenvolveu estudos sobre o cristianismo primitivo, a forma mito-especulativa da historiogênese, a transição da especulação historiogênia à historiográfica, o problema da ecúmena em Heródoto, Políbio e historiadores chineses e problemas teóricos modernos, como a feitiçaria na construção do sistema hegeliano;


d) para se tornar um cientista político competente, o que presumia a leitura dos clássicos Platão e Aristóteles, aprendeu grego (“não é possível lidar com fontes sem ser capaz de lê-las no original”);


e) para ter acesso a documentos políticos importantes para alguns estudos (depois abandonados) aprendeu russo com os filólogos Konstantin Moculski e G. Lozinski;


f) para ministrar um curso sobre instituições políticas chinesas, estudou o idioma com o propósito de investigar o histórico e os símbolos clássicos e assim entender as ideias políticas contemporâneas (1945-1950) daquele país.


Os tópicos permitem já uma reflexão sobre um tipo de estudioso: o acadêmico-professor que se converte num scholar. A história pessoal dos grandes intelectuais é um estímulo ao avanço ou à paralisia. “A maldição move, a bênção relaxa”. A frase do poeta William Blake poderia ser o posfácio do livro.


Reflexões autobiográficas (Editora É Realizações, São Paulo, 2008. 192 pp.) é um esforço de anamnesis concentrado mais na abertura ao conhecimento do que na tentativa de edulcorar a história pessoal ou mitificar a própria biografia. “Este livro oferece a melhor introdução possível à vida e ao pensamento deste que foi um notável scholar e talvez o melhor filósofo do nosso tempo”, diz um empolgado Ellis Sandoz, que editou as memórias de Voegelin colhidas em 1973 como fonte primária de um estudo convertido no livro The Voegelian Revolution: A Biographical Introduction ['A Revolução Voegeliana: uma introdução biográfica']. O depoimento é a consagração de uma vida. É a articulação sistematizada da busca do conhecimento embrulhada pela memória.


Há alguns aspectos que me impressionaram particularmente no filósofo, nascido em Colônia em 1901 e falecido em Stanford, Estados Unidos, em 1985. Primeiro, a disposição missionária para educar e formar uma elite intelectual. Tanto nos Estados Unidos — para onde fugiu em 1938 logo após o Anschluss [Conexão] e onde mais tarde se naturalizou — quanto na Alemanha, para onde retornou em 1958, foi um vibrante professor e criador de institutos de estudos que reuniam estudantes talentosos e interessados.


A segunda característica marcante é a honestidade intelectual, que o fizera modificar várias vezes trabalhos em andamento diante do surgimento de novas fontes bibliográficas (como em Order and history [Ordem e história]) e o abandono completo de The history of political ideas A história das ideias políticas], que já tinha quatro mil páginas escritas, por identificar que as ideias eram um desenvolvimento conceitual secundário e responsáveis por deformar a verdade da experiência e sua simbolização.


Terceira: a curiosidade e o amor pelo conhecimento, que Voegelin convertia em ferramentas de estímulo para impedir que sua investigação se limitasse a instrumentos teóricos específicos de cada ramo do saber humano. Para desenvolver ideias políticas, recorria à história, à filosofia, astrologia, alquimia, simbolismo gnóstico do Renascimento, aos achados arqueológicos (Manuscritos do Mar Morto, papiros de Nag Hammadi), às descobertas antropológicas (sobre o Paleolítico e civilizações independentes do Neolítico).


Um problema que se impõe a um autor intelectualmente insaciável e rigoroso é manter seus estudos numa constante evolução, ou num processo constante de revisão. Nas memórias, Voegelin faz reparos à própria interpretação e tratamento inadequado de alguns fenômenos (movimentos espirituais, teorias medievais, certos simbolismos nacional-socialistas) estudados no livro As religiões políticas. O filósofo questionou, inclusive, o uso do termo religião, que considerou muito vago porque “deformava o problema real da experiência, misturando-o com outro, que é o da doutrina ou do dogma”.


Resgatar Voegelin, autor dos também excelentes A nova ciência da política e Hitler e os Alemães (ambos com traduções brasileiras), é também resgatar uma conversação livre da degeneração da linguagem ideológica difundida com eficácia pelos próceres de ideologias revolucionárias.

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