15 agosto 2010

Eles, que odeiam tanto a democracia. Ou: um governo popular tem o direito de...

via Reinaldo Azevedo | VEJA.com de Reinaldo Azevedo em 11/08/10

Li num jornal, dia desses, a avaliação de um dito especialista — desses especialistas na própria obra, tão comuns por aqui; isto quando não se autodeclaram bispos das próprias idiossincrasias — segundo a qual a tarefa do tucano José Serra é realmente muito difícil porque o governo Lula é muito bem-avaliado etc e tal. Até aí, ok. Mas ele ia um tanto além e acabava, na prática, indagando como o tucano ousa se candidatar: afinal, inferia, se o governo vai tão bem, por que mudar? De todas as "teses" de petistas e "especialistas" dessa natureza, essa, sem dúvida, é a mais delinqüente de todas. Eu não tenho a menor intenção de mudar opinião de petistas. Eles me lêem porque, creio, me admiram (!!!), não porque eu me esforce para seduzi-los, não é?
Mas acredito que possa dizer alguma coisa útil aos equivocados. Nunca é tarde… A tese é estúpida, em primeiro lugar, porque estaríamos diante de um notável paradoxo: um governo que chegou ao poder segundo critérios democráticos, ao ser muito bem-avaliado, ganharia, então, o direito de extinguir a democracia, tornando-a irrelevante, é isso? A popularidade lhe asseguraria uma espécie de salvo-conduto para começar a pôr fim ao regime de alternância no poder.
A suposição é estúpida, pautada pelo autoritarismo mais cretino, involuntário em alguns casos, fruto da má fé na maioria das vezes. Ora, um governo popular não ganha o direito do repeteco fora das prescrições constitucionais para a sua sucessão. Essa tolice, no entanto, tem história: a democracia é relativamente recente no Brasil e ainda vivemos ecos daquele tempo em que a "oposição", qualquer que fosse ela, propunha virar a mesa, fazer tudo diferente, botar a realidade pelo avesso. Temos uma versão quase cômica desse procedimento no discurso de Plínio de Arruda Sampaio, o socialista quatrocentão. Não precisamos ir longe: ainda em 2002, embora já bastante domado pela realidade, o PT  vinha com a patacoada de que mudaria tudo. E, como se sabe, não mudou — o que não quer dizer que tenha abandonado seu projeto autoritário, mas isso é outra coisa; já tratei do assunto em centenas de textos.
Assim como o PT não veio para "mudar tudo" — ao contrário: errou mais quando mudou, diga-se —, é evidente que um eventual governo Serra não significaria a negação do governo Lula. Aliás, ainda que vença, ele certamente não fará o discurso vigarista do "nunca antes na história destepaiz" porque é de outra natureza e de outra formação. Tanto quanto ele não é uma negação necessária, quem pode assegurar que Dilma é a continuidade necessária? Então que conversa estúpida é essa de que estamos diante do confronto "mudança X continuidade"? Os ditos especialistas que repetem essa bobagem ou caíram de vez na boçalidade ou estão fazendo política partidária.
Um desses bobalhões tentou uma daquelas sínteses cujo único apelo é um paradoxo medíocre: Serra seria um bom candidato, mas, em 2002, era a continuidade quando se queria mudança; e agora é a mudança quando se quer continuidade. O sujeito está errado em 2002 e agora. Naquela eleição, talvez ele fosse mais a mudança do que o próprio Lula. Hoje, entendo que o país pede um pouco mais do que Dilma pode oferecer se quiser corrigir algumas distorções da economia que já estão dadas e continuar na rota do crescimento. A continuidade de um governo do PT com Dilma não significa a continuidade do governo Lula. Não no presidencialismo e com a força e prerrogativas que tem um presidente da República por aqui.
Não por acaso, os petistas se enchem de dedos e cuidados e espalham aos quatro cantos: "Ah, mas Lula continuará a ser o fiador do governo"; "Ah, mas Antonio Palocci está por aí para garantir que nada vai mudar"; "Ah, o PMDB não deixará Dilma radicalizar à esquerda"… Temos, em suma, uma candidata cuja principal virtude é ser tutelada.  Estaria mesmo pronta para um eventual governo da continuidade? A resposta é "não"! Porque NÃO EXISTE GOVERNO DE CONTINUIDADE. Aliás, nem FHC nem Lula repetiram no segundo mandato o primeiro.
Entendo que os petistas venham com essa bobagem de "como Serra ousa disputar uma eleição contra um governo popular?" Estão fazendo campanha. Que isso, no entanto, paute a imprensa e gente que ainda se diz "especialista", aí já é um pouco demais. A indagação trai a nossa ainda pouca familiaridade com o regime democrático. Imaginem se, nos EUA, alguém indagaria algo parecido. Seria o que é: a inferência de que a popularidade de um governo dispensa a disputa, o confronto, a divergência.
De resto,  Serra ou Dilma não vai substituir Lula, mas sucedê-lo. Substituição existe nas monarquias hereditárias e nas ditaduras. Ainda não chegamos lá!

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