01 novembro 2010

Ficha Limpa, Supremo, exceções constitucionais e a corda no pescoço da própr...

via Reinaldo Azevedo | VEJA.com de Reinaldo Azevedo em 28/10/10


Escreverei mais uma vez sobre a sessão de ontem do Supremo. E pretendo demonstrar que os que aplaudem aquela soma impressionante de excrescências estão pondo a corda no próprio pescoço, especialmente se prestarmos atenção aos argumentos que animam a cadeia de inconstitucionalidades e ilegalidades. Sim, leitor: sei que o tema parece um tanto árido. Não chega nem a ser popular.  Também está um pouco fora da disputa eleitoral em curso — e a política não se limita a ela. Mas, acreditem, é essencial abordar esse assunto porque se trata de manter intocado ou de relativizar o estado de direito no Brasil. Considero essa uma das questões mais importantes sobre as quais já escrevi aqui. O moderno autoritarismo na América Latina, o civil, não se instala mais com tanques, fuzis, baionetas. Pode-se chegar a uma quase ditadura sem dar um só tiro. Leis de exceção e o desrespeito às leis são as suas armas. Subestimar essa questão é subestimar o essencial.
Ontem, escrevi um texto relativamente longo sobre o julgamento que decidiu pela validade da lei já para a eleição deste ano, no julgamento do caso Jader Barbalho. A personagem em questão impede muita gente de pensar com clareza. Porque achamos bom "pegar" Jader, a tendência é apoiar que se dê um pé no traseiro da lei, como se a chutada não deixasse, então, de ter validade absoluta também para as pessoas que consideramos decentes — incluindo nós mesmos. Se a lei não vale, vale o arbítrio.
O que se deu ontem no tribunal foi bem mais grave do que parece. Existe uma regra para o desempate, prevista no Artigo 13 do Regimento Interno. O presidente da Casa — no momento, Cesar Peluso — tem o voto qualificado: pode votar uma segunda vez e desempatar. Ele preferiu não usá-la. O tribunal recorreu a outros expedientes, que o próprio Peluso, na proclamação do resultado, admitiu excepcionais e imperfeitos. A que ponto chegamos! Para maiores detalhes, ver o post de ontem. Não vou repetir argumentos.
É claro que é chocante ver ministros da nossa corte suprema a afirmar que estão renunciando ao que na lei é explícito para adotar, confessadamente, um procedimento "por analogia". Sim, eu já acho a tal Lei da Ficha Limpa escancaradamente inconstitucional. O argumento é simplíssimo e, a meu ver, ate agora incontestado no terreno jurídico: a Constituição brasileira abriga o princípio da presunção da inocência, e ninguém está condenado antes que uma sentença tenha transitado em julgado. Para arremate dos males e também contra a Constituição, operou-se uma mudança nas regras da elegibilidade menos de um ano antes da eleição. Sem as maluquices de ontem, pois, já se tinha heterodoxia o bastante.
Argumentação
Confesso ter as piores antevisões quando ouço ministros como Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandoswski e Ayres Britto a evocar uma certa vontade coletiva, à qual se deveria dar satisfação, apelando, então, ao que costumo chamar "AI-5 da Demagogia". Se a interpretação da suposta vontade do povo — ou a sujeição a seu alarido — tem o poder de substituir as garantias da Carta e dos códigos legais, cesse tudo, então, o que todos esses textos cantam e se passe para a justiça direta, sem mediação: o povo julga na praça e decide quem deve e quem não deve ser linchado, por exemplo.
A Justiça é lenta? É, sim! É preciso dar mais celeridade aos processos? Então vamos cuidar disso. Mas as garantias constitucionais não podem ser vistas agora pelos próprios ministros do Supremo como símbolos da procrastinação. Preocupou-me sobremaneira que, diante das objeções levantadas por Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Mello e Dias Toffoli, Barbosa e Britto não tenham contraposto uma só questão técnica: preferiram falar da vontade popular.
Igualmente escandalizado fiquei ao ver Ophir Cavalcanti, presidente da OAB, aplaudir a decisão. Se o mérito do Ficha Limpa é, vá lá, "debatível" (posso usar um adjetivo inexistente e de exceção, não é, senhores ministros?), não há como o expediente a que se recorreu ontem não chocar a consciência jurídica. E reitero: o caminho estava dado; Peluso poderia — e, na verdade, deveria — ter usado o seu direito. Cavalcanti não quis nem saber. Aquele que preside o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil exultou com a decisão tomada "por analogia".
Corda no pescoço
Sempre que alguém aplaudir uma aplicação de exceção da lei, discricionária, estará pondo uma corda no próprio pescoço. Esse grupo de agora do STF recorreu à "analogia". Contra Jader, aquele de quem não gostamos, podemos achar certo. Mas outras turmas haverá no tribunal, outros casos serão julgados. Se os ministros de agora puderam fazer o que lhes deu na veneta nesse caso, por que outros não poderão fazer o mesmo em outros  — e com pessoas pelas quais, eventualmente, tenhamos alguma simpatia?
A própria imprensa, cegada, na sua maioria, pelo desejo de pegar alguns larápios — desejo que pode ser bom e honesto, mas que não tem o direito de ser burro —, está brincando com fogo. O governo que está aí odeia a liberdade de expressão. Os projetos para "controlar a mídia" estão a todo vapor. Assembléias Legislativas, inspiradas na Confecom de Franklin Martins, já começam a votar os seus próprios códigos particulares. ATENÇÃO, SENHORES COMANDANTES DE JORNAIS, TVs, REVISTAS, PORTAIS E AFINS: a Constituição, com clareza inquestionável, assegura a liberdade de expressão — com igual  clareza, garante a presunção da inocência. Nada impede que, em nome da voz rouca das ruas, de "milhões" de assinaturas, do "desejo coletivo" e outras demagogias, atalhos sejam encontrados para impor formas veladas de censura. Ou alguém é inocente a ponto de achar que a lei que é desrespeitada para "pegar Jader" restará inteira para proteger a imprensa, por exemplo?
A questão é antiqüíssima. Está em "Críton - Ou do Dever", um dos Diálogos, de Platão. Críton tenta convencer Sócrates a deixar a cidade, a fugir — ou vai morrer, uma vez que já foi condenado. E se dispõe a financiar a fuga. Os dois têm, então, um diálogo sobre o dever, a justiça e a "vontade do povo". Reproduzo trechos, na tradução de Márcio Pugliesi e Edson Bini. E, bem, recomendo Sócrates e Platão para alguns ministros do Supremo.  Volto para encerrar.
*
(SÓCRATES) - se, ao seguir a opinião dos ignorantes, destruíssemos aquilo que apenas por um regime saudável se conserva e que pelo mau regime se destrói, poderemos viver depois da destruição do primeiro? E, diga-me, não é este nosso corpo?
(CRÍTON) - Sem dúvida, nosso corpo.
(SÓCRATES) - E podemos viver com um corpo corrompido ou destruído?
(CRÍTON)   - Seguramente, não.
(SÓCRATES) - E poderemos viver depois da corrupção daquilo que apenas pela justiça vive em nós e do que a injustiça destrói? (…)
(CRÍTON)  - De modo algum.
(SÓCRATES) - E, não é a mais preciosa?
(CRÍTON) - Muito mais.
(SÓCRATES) - Portanto, querido Críton, não devemos nos preocupar com aquilo que o povo venha a dizer, mas sim pelo que venha a dizer o único que conhece o justo e o injusto, e este único juiz é a verdade. Donde poderás concluir que estabeleceste princípios falsos quando disseste inicialmente que devíamos fazer caso da opinião do povo acerca do justo, o bom, o digno e seus opostos. Talvez se me diga: o povo pode fazer-nos morrer.
(CRÍTON)   - Dir-se-á assim, seguramente.
(…)
(SÓCRATES)  É correto que nunca se deve cometer injustiça? É lícito cometê-la em certas ocasiões? Ou é absolutamente certo que toda injustiça deva ser evitada como já concordamos há pouco? E todas essas opiniões, nas quais acordamos, dissiparam-se em tão pouco tempo e seria possível que em nossa idade, Críton, nossas mais sérias controvérsias tivessem sido como as das crianças sem que nos apercebêssemos? Ou devemos nos ater unicamente ao que dissemos, de que toda injustiça é vergonhosa e nociva para aquele que a comete, diga o que queira dizer a multidão, e resulte dela o bem ou o mal? Falaremos assim, ou não?
(CRÍTON)   - Assim.
(SÓCRATES) - Então, também não devemos cometer injustiça relativamente àqueles que no-la fazem ainda que este povo acredite que isto seja lícito, uma vez que concordas que isto não pode ser feito de modo algum.
(CRÍTON) - Assim me parece.
(SÓCRATES) - É ou não lícito fazer mal a uma pessoa?
(CRÍTON)  - Não é justo, Sócrates.
(SÓCRATES)   - É justo, como o vulgo acredita, pagar o mal com o mal?  Ou é injusto?
(CRÍTON) - É injusto.
(SÓCRATES) - É correto que entre fazer o mal e ser injusto não há diferença?
(CRÍTON) - Concordo.
(SÓCRATES) - Portanto, nunca se deve cometer injustiça nem pagar o mal com o mal, seja lá o que for que nos tiverem feito (…)
Voltei
Leiam o diálogo inteiro. Deve existir em vários sites por aí. Sócrates não foge. A passagem fundamental do trecho que reproduzo é esta: "se, ao seguir a opinião dos ignorantes, destruíssemos aquilo que apenas por um regime saudável se conserva e que pelo mau regime se destrói, poderemos viver depois da destruição do primeiro?"
O corpo de uma democracia são as leis, é o estado de direito. E nem mesmo para punir "os maus" se deve corrompê-lo com um mau regime, com uma má disciplina. Se as leis que temos não são suficientes ou eficientes para enfrentar os problemas dados, que sejam mudadas — coisa que o Supremo não pode fazer —, mas jamais aviltadas, ainda que com propósitos nobres.
O Supremo começa a ouvir mais o vulgo do que Sócrates e Platão.

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