15 dezembro 2008

POR QUEM A CURVA DO SINO DOBRA

Do site Laudas Críticas
Por quem a curva do sino dobra


Está demorando muito para a imprensa no Brasil usar como gancho para pautas de educação o recente lançamento nos Estados Unidos do livro Real Education: Four simple truths for bringing America’s schools back to reality (Educação Real: Quatro verdades simples para trazer as escolas da América de volta à realidade). Seu autor, que esteve no Brasil recentemente, é o cientista político Charles Murray, co-autor com Richard Herrnstein (1930-1994), psicólogo de Harvard, do polêmico livro The Bell Curve: Intelligence and class structure in american life, publicado em 1994. Infelizmente, a maior parte das matérias que mencionaram o novo lançamento explorou muito pouco ou deixaram de lado os seus desdobramentos para a educação, pois se prenderam às mesmas antigas discussões sobre a obra anterior.

Um enfoque diferenciado em meio a essa mesmice midiática apareceu ontem, sexta feira (28/11), com a reportagem “Abaixo o romantismo educacional”, de Martha San Juan França, publicada no caderno “Eu & Fim de Semana”, do jornal Valor Econômico. A matéria vai direto ao resumo da ópera do novo livro de Murray ao mostrar sua tese de que “não há necessidade — e se trata até de desperdício — de obrigar todos os estudantes a cursar uma faculdade”. Segundo o pesquisador, avaliações educacionais nos EUA mostram que 80% dos jovens estão abaixo da média de “competência cognitiva” necessária para refletir sobre questões intelectualmente complexas. Para entender a explicação dele sobre isso, segue a transcrição de uma de suas declarações à reportagem.

Vamos ser realistas. O diploma normalmente comprova que a pessoa teve uma educação liberal clássica. Significa que tem condições de ler e entender textos difíceis. Mas centenas de jovens nunca conseguirão ler e entender, por exemplo, a Ética de Aristóteles. O resultado é que temos faculdades que oferecem cursos fracos, aumentam as notas e fingem que os seus alunos estão fazendo atividades de nível universitário quando, de fato, não estão. De todas as contribuições que meu livro pode trazer, a que mais me agradaria ver seria o reconhecimento da fraude que o diploma representa.


Embora essa tese seja altamente questionável, não há razão para deixar de aproveitá-la para retomar com outro ângulo questões sobre a situação da educação superior no Brasil, onde um diploma de faculdade se tornou sinônimo de melhor qualificação para o mercado de trabalho. Além disso, tivemos recentemente as avaliações do Ministério da Educação sobre o mau desempenho de muitos cursos superiores, especialmente nas áreas de direito e de pedagogia. E, por incrível que pareça, tivemos até manifestações contrárias a essa iniciativa do MEC, como a do artigo “Pelo direito à ruindade” (13/02/2008), de Gustavo Ioschpe, que qualificou esse esforço como “mais um caso do viés ideológico antiliberal contaminando uma área estratégica para o país”.

Tese polêmica

Hermstein, que foi o autor principal de The Bell Curve, morreu pouco tempo após o lançamento do livro. Com isso, sobraram para Murray a fama, os aplausos e também as bordoadas pela tese central da obra, segundo a qual o QI (coeficiente de inteligência), como descreve a reportagem de Martha, “é um fator preditivo três vezes melhor do que as condições sociais ou a educação para indicar o desempenho no trabalho, a renda e até as chances de gravidez fora do casamento de determinados grupos”.




Uma das mais consistentes objeções a teses desse tipo foi a do paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002) em seu livro A Falsa Medida do Homem, publicado em 1994, três anos antes de The Bell Curve e revisado dois anos depois. (Aliás, já que alguns veículos se propuseram a repisar esse assunto, poderiam tê-lo puxado por meio de Gould ou de outros estudiosos, como fez o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, na revista Ciência Hoje Online em sua coluna “A banalidade do mal” , de 14/11/2008).

Não sou especialista no assunto nem li esses dois livros de Murray. Mas tenho lido desde seu lançamento muitas entrevistas dele e até alguns estudos sobre sua obra, inclusive a famosa crítica a Gould feita pelo psicólogo J. Philippe Rushton, da Universidade de Western Ontario, “Race, intelligence, and the brain: The errors and omissions of the ‘revised’ edition of S. J. Gould’s the mismeasure of man (1996)“, publicada na revista Personality and Individual Differences (v. 23, nº 1, julho de 1997, pp. 169-180 ).

Mesmo sendo leigo, tenho restrições à tese central de The Bell Curve em função da complexidade dos fatores por ela correlacionados. Além disso, há muitos questionamentos sobre a própria concepção de inteligência adotada como pressuposto nesse livro e em grande parte dos estudos sobre o assunto. No entanto, o que não deveria de modo algum acontecer com esse tema é a reação que chega muitas vezes a ser raivosa, tornando impossível um mínimo de reflexão, e que quase sempre não passa de exagero fomentado pela praga do “politicamente correto”.

Pauta desprezada

Independentemente de ter como pressuposto a polêmica tese da curva do sino ou curva normal, e de concordarmos ou não com ela, o novo livro de Murray tem o mérito de chamar atenção para o problema da fetichização da formação superior. É válida a concepção por ele empregada de “competência cognitiva para a educação superior”? Se for, é verdadeira sua conclusão de que a maioria das pessoas não a tem? Essas questões têm tudo a ver com a convicção, que parece ser cada vez mais aceita, de que a maioria das faculdades, em vez de manter seus padrões de exigência, tende a baixá-los para adequá-los à média de seus alunos, evitando a evasão e a conseqüente queda da receita de mensalidades.

Além disso tudo, mesmo que a nova tese de Murray não seja válida ou que não sejam corretos os índices que ele aponta, seu livro estimula a perguntar: é necessário que todo mundo tenha formação superior? Isso não tem nada a ver com as polêmicas sobre se determinadas profissões, como a de jornalista, devem ou não exigir graduação específica. O que está em questão aqui — mesmo assumindo que Murray esteja completamente errado — não é apenas o ideário da formação superior como etapa necessária na educação de cada pessoa, mas também se é minimamente vantajosa a relação entre tempo e custo dispendidos e o conhecimento adquirido.

Além disso, mesmo para os casos em que é indiscutivelmente necessária a formação específica, há que se questionar a proliferação do ensino superior por meio de universidades. Grande parte das necessidades do mercado de trabalho poderia ser suprida por faculdades, institutos e outras instituições isoladas voltadas especificamente ao ensino de graduação. Mas o que tivemos foi o crescimento do modelo universitário, que pressupõe um forte vínculo entre a graduação, a pós-graduação e a pesquisa. Segundo dados do Censo da Educação Superior, do total de 4.676.646 de estudantes universitários matriculados no Brasil em 2006, 3.238.305, ou seja, 69,24% estavam nas 178 universidades ou nos 119 centros universitários.

Enfim, há muito a ser explorado pela imprensa em relação a esses aspectos da educação superior. Inclusive sob a perspectiva da necessidade de efetiva valorização da educação básica e de políticas públicas de assistência social, que podem ter efeito no desenvolvimento cognitivo e, portanto, na inteligência. Esse, aliás, é um dos aspectos que me parece mais terem sido desconsiderados por muitos dos adeptos da curva do sino, que muitas vezes advogam propostas para a sociedade que talvez não seriam endossadas nem mesmo por Murray. Estatísticas podem ser verdadeiras, mas não há nada de científico em compreendê-las como expressão da natureza humana. Graus de curvatura sempre haverá, mas para nos alertar sobre eles, vale a pena retomar as palavras da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), pois é por nós todos que dobra a curva do sino.

O problema das modernas teorias do behaviorismo não é que elas estejam erradas, mas sim que podem vir a tornar-se verdadeiras, que realmente constituam as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É perfeitamente concebível que a era moderna — que teve início com um surto tão promissor e tão sem precedentes de atividade humana — venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.
(Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 335-336.)


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PS das 21h39: Título nada original — O físico e jornalista Igor Zolnerkevic, editor do blog Universo Físico, informou (ver comentários) que Natalie Anger, colunista do New York Times, usou o mesmo título desta postagem para um dos capítulos de seu livro The Canon — A Whirligig Tour of the Beautiful Basics of Science, publicado em março deste ano. Ou seja, não fui nada original ao brincar com o título do livro de Hemingway. Fiz em seguida uma busca, e encontrei vários outros precedentes. Seguem alguns deles (há muitos mais), que ficam como sugestão de leitura.

For Whom the Bell Curve Tolls — The Controversial Practice of Forced Ranking
For whom the bell-curve tolls
Ask Not for Whom the Bell Curve Tolls . . .
For Whom The Bell Curve Tolls
For whom the bell curve tolls — not all students achieve equally
For Whom the Bell Curve Tolls
Race and I.Q.: For Whom the Bell Curve Tolls
PS de 30/11 as 08h39: Mas nem tanto — Graças à língua portuguesa, há um aspecto de originalidade da paródia feita por mim com o livro de Hemingway. A tradução do título For whom the bells tolls para o português, que poderia ter sido consagrada como “Por quem os sinos tocam”, é “Por quem os sinos dobram”, pois “dobrar” tem também o sentido de “tocar”. Sem essa peculiaridade de nosso idioma, não teria sido possível, antes de citar Hannah Arendt, associar o termo “dobrar” a outro sentido, o da curvatura do gráfico, afirmando que é por nós que o gráfico do sino sofre suas inflexões.

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