04 abril 2011

Democracia e reforma política: que tal uma freada para arrumar os conceitos?

Por Bolívar Lamounier

Quando falamos das rebeliões no mundo árabe, sabemos que as democracias que eventualmente substituírem as autocracias serão contraditórias, precárias, instáveis e de má qualidade. Não é plausível supor que venham de imediato a reluzir entre as melhores. É evidente que vão enfrentar percalços de toda ordem – sociais, culturais, institucionais… . Uma visão realista deve portanto colocá-las numa perspectiva histórico-evolutiva, admitindo que elas levem muitos anos, talvez décadas, para se consolidarem e para se tornarem plenamente legítimas aos olhos de seus cidadãos.


QUESTÕES PRÉVIAS


É curioso como nós, brasileiros, em geral nos esquecemos de aplicar esse raciocínio ao nosso próprio caso. Ao debater o status de nossa democracia, fazemo-lo sempre com aspereza, não raro com angústia e boa dose de auto-flagelação. Quase sempre sentimos que há algo falso, distorcido e alienante no simples ato de vocalizar a expressão “democracia brasileira”.E estamos sempre a desancá-la, a eviscerá-la, a mostrar suas deficiências. Para muitos de nós, evidenciar a distância entre o ideal democrático e a realidade cotidiana parece ser o objetivo supremo da filosofia política.


Mas há dois pontos importantes que em geral não percebemos. Primeiro, desancar a democracia que temos é fácil, facílimo. Ninguém contesta que nossa democracia é “defeituosa” (uso aqui a expressão empregada naquele famoso levantamento da revista Economist). Qualquer pessoa que leia os jornais sabe que há muita corrupção, muito desrespeito à lei, muita incompetência e irresponsabilidade nos três Poderes etc etc. Até aí, como se costuma dizer, morreu Neves.


Por favor, me entendam. Eu não dizendo que tais críticas sejam inócuas ou inúteis. De jeito nenhum. São importantíssimas. Digo apenas que se trata de um exercício fácil, dado existir um consenso total a esse respeito. Ninguém vai ser criticado por criticar dessa forma os nossos padrões democráticos.


O outro ponto que temos tendência a esquecer é que já fizemos uma grande parte – a metade ou muito mais que a metade – do trabalho básico de construção da democracia. Volto ao que disse acima acerca do mundo árabe. O primeiro e talvez o maior problema nesse nosso desencontro com a democracia decorre de querermos pensá-la sub specie aeternitatis, fora ou acima da realidade histórica. É óbvio que não começamos ontem, começamos 200 anos atrás. (Isto só quem não reconhece são os intelectuais petistas, para os quais a democracia brasileira começou no mesmo dia em que o PT foi fundado). (Odeio fazer merchandising, mas este argumento está razoavelmente bem demonstrado em meu livro “Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira”, publicado em 2005).


CONCEITO DE DEMOCRACIA


Uma vez admitida a necessidade da perspectiva histórica, resta indagar o que é, afinal, uma democracia devidamente “construída”. Ou seja, como devemos definir o regime democrático (democrático-representativo). Cada pessoa pode defini-lo como quiser: definições são convenções, nada mais que isso. Mas é claro que uma definição será tanto melhor quanto mais plausível no entender de outras pessoas: quanto mais facilite o reconhecimento de uma dada realidade por uma pluralidade de pessoas. Podemos dizer, por exemplo, que democracia é um sistema que tenha realizado a mais plena igualdade social, estancado em definitivo a corrupção, tornado totalmente desnecessário o recurso à força e, de quebra, acabado com essa coisa desagradável que conhecemos como “política”. O problema com tal definição é que a realidade a que ela se refere já tem outros nomes, como utopia, céu ou paraíso.


Outra definição possível é a da teoria marxista: democracia é a fachada política de que a burguesia se vale para conferir uma aparência de legitimidade à opressão que ela exerce sobre os trabalhadores. Fica difícil entender por que em tantos países e conjunturas os trabalhadores lutaram… pela democracia. Assim é, se lhe parece, como diria Shakespeare.


No sentido geralmente aceito do termo, democracia é um sistema político no qual o acesso legítimo a posições de autoridade pública se dá mediante eleições periódicas, limpas e livres (“elections are the only game in town”, na ótima expressão de Juan Linz), e os governos governam e se mantêm responsabilizáveis (accountable) graças a restrições constitucionais.


Do caroço conceitual acima decorrem algumas implicações importantes. O poder é exercido pelos vencedores do processo eleitoral pertinente, mas os perdedores podem fiscalizar o governo e preparam para as eleições seguintes com base em garantias previstas na Constituição e reforçadas por outros mecanismos, notadamente por uma imprensa livre. Dessa forma, o exercício do poder é constantemente condicionado e restringido por pressões competitivas: partidos políticos e grupos de interesse atuam sem cessar no sentido de influenciar a formulação e a implementação das políticas públicas. A legitimidade do poder depende de certo grau de consentimento, formalmente evidenciado pela aquiescência de um parlamento e pela atuação desimpedida de partidos de oposição. A integridade e os interesses de indivíduos e minorias, bem como de organizações e grupos privados da sociedade, são protegidos por restrições institucionais em efetivo vigor.


REFORMA POLÍTICA


Por que haveria a sociedade de demandar uma reforma política? Que tipo de reforma? Como poderia fazer valer o seu poder de pressão? Razões para demandá-la, existem a meu ver pelo menos três importantes, e estreitamente interligadas.


Primeiro, money. As regras político-institucionais brasileiras embutem um custo exagerado, e quem arca com ele, direta ou indiretamente, somos nós, os contribuintes. Segundo, valores morais. O sistema vigente de eleições, especialmente, já deu sobejas provas de afinidade com a corrupção. No meu modo de ver, cada cidadão honesto tem um motivo bem definido para demandar reformas que a reduzam e controlem. Não quer legar a seus filhos e netos um país degradado como é atualmente o Brasil nesse aspecto. Para dar um efetivo combate à corrupção, há muito a fazer em termos de legislação e na esfera do Judiciário – haja vista a alta chance de absolvição dos mensaleiros em razão da prescrição do crime de formação de quadrilha antes que o STF providencie o julgamento. Uma das principais fontes de corrupção política é o financiamento das campanhas eleitorais no sistema vigente. Por último, o cidadão há de querer a preservação e o aprimoramento das instituições democráticas, e aqui o ponto nevrálgico é o Legislativo. A degradação do Congresso aos olhos do cidadão não é uma danse sur place ; é um processo que tende a se deslocar para um equilíbrio cada vez pior. Poderá aumentar muito ainda, se nada for feito. Isto porque uma de suas principais causas é um círculo vicioso entre o recrutamento de candidatos, por um lado, e a irrelevância e a péssima imagem da instituição, pelo outro.


Executivo e Legislativo


A reforma ora em discussão no Congresso não é necessariamente a mais relevante. Como bem lembrou Eduardo Graeff em artigo publicado hoje (04.04.2011) no Estadão, uma reforma séria deveria começar pelo Executivo, e deveria ter entre seus principais objetivos justamente reduzir o domínio exagerado que ele exerce sobre o Legislativo. Entre as propostas merecedoras de atenção, avultam a meu juízo a limitação da prerrogativa presidencial de editar Medidas Provisórias, o orçamento impositivo e uma drástica redução no número de cargos comissionados.


Se dependesse de mim, tal reforma enfrentaria corajosamente a questão do tamanho exagerado do Congresso. Nos Federalist Papers, James Madison observou que uma assembléia de 10 mil sábios seria uma turba como qualquer outra. Essa foi uma questão que eu levantei em 1985-86, quando membro da Comissão de Estudos Constitucionais (a “Comissão Afonso Arinos”). Por que o Brasil precisa de uma Câmara maior que a dos Estados Unidos? Por que três senadores por estado? Não vejo razão nenhuma. Um Congresso menor com certeza funcionaria melhor. A ironia é que os deputados e senadores teriam individualmente mais poder, e o exerceriam com mais qualidade, se não constituíssem um corpo tão numeroso.


Outra providência necessária, relevante tanto para o funcionamento como para a moralização, diz respeito à figura de suplente de senador. A experiência vem mostrando, sem margem para dúvida, que se trata de uma excrescência, diria mesmo uma aberração. Com o restabelecimento da democracia, em 1985, todas as idéias políticas do período militar passaram a ser vistas como “entulho autoritário” e descartadas numa só penada. Na maioria dos casos, era isso mesmo o que precisava ser feito, mas o mecanismo conhecido como sublegenda era muito superior ao suplente sem voto, que o substituiu. Pelo mecanismo da sublegenda, cada partido podia inscrever até três candidatos para uma mesma vaga de senador. O mais votado dos três ficava com a cadeira; mas a vitória sobre um partido adversário dependia da soma dos votos dados aos três, vale dizer, ao partido. Com esta fórmula, produzia-se o suplente, que obviamente precisa existir, mas um suplente legitimado pelas urnas. Recorde-se, a propósito, que Fernando Henrique Cardoso entrou na política como candidato ao senado numa das sublegendas do MDB. Isto foi em 1978. O vencedor foi Franco Montoro, Fernando Henrique ficou na suplência. Em 1982, Montoro foi eleito governador e Fernando Henrique assumiu a cadeira.


Outro aspecto relevante no combate à corrupção tem a ver com o financiamento das campanhas eleitorais. No Senado, a Comissão de Reforma Política recomendou substituir o voto em lista aberta pelo voto em lista fechada (ver abaixo a explicação destes termos), presumivelmente com vistas a instituir o financiamento público de campanhas, que dessa forma poderia ser mais facilmente operacionalizado.


Fortalecimento do sistema de partidos


Para fortalecer estruturalmente o sistema de partidos, diversas medidas tem sido estudadas, entre elas a cláusula de barreira (exigência de um percentual mínimo para um partido obter representação na Câmara), a fidelidade partidária e o fim das coligações entre partidos em eleições legislativas. São três caminhos possíveis para o objetivo visado. Uma combinação apropriada entre eles seria sem dúvida benéfica, especialmente no sentido de simplificar e robustecer a estrutura partidária. Mas a chance de aprovação é pequena, devido aos interesses eleitorais dos congressistas. O fim das coligações a cláusula de barreira (esta equivocadamente declarada inconstitucional pelo STF) serão combatidas com unhas e dentes pelos partidos “nanicos”. E a opinião pública dificilmente se engajará a favor delas, quando nada por serem de difícil entendimento para o leigo em legislação eleitoral.


Accountability


Outro problema que requer equacionamento parece-me ser a distância sideral que hoje existe entre representantes e representados. Trata-se aqui da necessidade de uma incorporação mais efetiva dos cidadãos relativamente desprovidos de recursos e de instrução ao sistema político. Para isto, é mister melhorar a inteligibilidade do processo político e das políticas públicas para o eleitor, tornar mais densos os vínculos verticais dele com seus representantes, e proporcionar-lhe uma sensação de maior eficácia no exercício do voto e na apresentação de eventuais pleitos.


Este tema requer muito estudo e cuidado, pois a distância entre representados e representantes e a baixa inteligibilidade do sistema provavelmente resultam mais das condições sociais e educacionais que das regras institucionais. Entre estas, existe no entanto a alternativa do voto distrital, que seguramente contribuiria para reduzir as atuais dificuldades.


No Brasil, temos o hábito de designar como “voto distrital” tanto o modelo anglo-saxão, conhecido como “distrital puro” como o modelo alemão, conhecido como “distrital misto”. A terminologia sugere certa semelhança entre ambos, mas é uma semelhança ilusória: o primeiro é um modelo majoritário, o segundo é proporcional. Tomo a liberdade de sugerir ao leitor pouco familiarizado com estes termos uma consulta à seção “Conceitos”, no final deste trabalho.


No meu modo de ver, um avanço importante poderia ser logrado com um ou com outro. Mas nenhum dos dois tem condições de ser implantado sem alterações de monta na mecânica eleitoral brasileira. Ambos exigem a divisão das atuais circunscrições estaduais em circunscrições (distritos) menores: algo como micro-regiões, cada uma elegendo um só representante. Dá-se, entretanto, que o número de deputados estaduais não coincide com o de deputados federais de cada estado, e nem equivale a um múltiplo inteiro do segundo. Como então combinar os dois níveis? Esta é uma dificuldade real.


Eu vejo porém com bons olhos a implantação do voto distrital para vereador, já com vistas à eleição municipal de 2012, nas cidades de maior porte – aquelas acima de 200 mil habitantes, basicamente. O mecanismo adotado para a eleição de vereadores não precisa ser idêntico ao utilizado na eleição dos deputados federais e estaduais. A insistência em fórmulas rigorosamente simétricas nada tem a ver com as realidades necessariamente plásticas da vida política. Uma reforma deste tipo, embora parcial, poderia trazer muitos benefícios, razão pela qual os prefeitos, vereadores e eleitores das cidades maiores deveriam se interessar por tal proposta.


POR QUE A SOCIEDADE NÃO TEM SE MANIFESTADO?


Por que os representados não se manifestam, não demandam, não pressionam por uma reforma efetiva? Por muitos motivos, naturalmente, mas, no fundo, pelos mesmos que levam os representantes a não se engajarem seriamente em tal projeto: 1) a complexidade real das questões; 2) divergências ideológicas e partidárias: as contradições que existem no Congresso, existem também na sociedade; (3) diagnósticos desencontrados: discussões conduzidas exclusivamente no âmbito parlamentar e sem embasamento técnico não parecem suficientes para dissipar as dúvidas.


Contudo, os políticos e os cidadãos se distinguem claramente num quarto aspecto. Os políticos fogem da reforma como o diabo foge da cruz por temerem efeitos adversos em seus planos de reeleição. A maioria deles têm um interesse consolidado no sistema vigente. Sabem como se reeleger dentro dele. Não querem trocar o certo pelo incerto. No caso dos eleitores, o que há é um problema quase insolúvel de motivação, mobilização e participação. Mesmo com o avanço das redes sociais, é dificílimo organizar uma ação coletiva desse tipo.


ALTERNATIVAS


I. Deixar tudo como está


A seu favor, o sistema vigente parece-me ter dois pontos. Primeiro, o fato de já estar implantado e em operação há muito tempo. Toda reforma envolve custos, tanto financeiros e administrativos quanto de aprendizagem por parte dos usuários, ou seja, dos eleitores. Uma vantagem do sistema vigente, talvez a principal, é que essa parte já está resolvida.


Outro aspecto positivo do atual sistema é ser operado de maneira idêntica nos três níveis da federação. De fato, o procedimento utilizado para eleger os deputados federais e estaduais e os vereadores é exatamente o mesmo. Há uma isonomia total nos conceitos, na tecnologia eletrônica de votação e nos cálculos que determinam quantas cadeiras cabem aos diferentes partidos e quem são os eleitos dentro de cada um deles. Mas aí acabam, a meu juízo, as vantagens. O princípio proporcional parece-me em si questionável, por privilegiar em excesso o objetivo de representar a diversidade das correntes de opinião e por tornar o processo político-eleitoral demasiado complexo para o eleitor de média ou baixa escolaridade. No caso brasileiro, diversos outros fatores elevam essas duas dificuldades à enésima potência. Com a super-representação dos estados menos populosos, o próprio princípio da proporcionalidade (pedra de toque de todo o sistema) sofre grave distorção. Associado ao voto em lista aberta, este princípio produz um forte efeito de fragmentação sobre o sistema de partidos. Sem a cláusula de barreira, pior ainda.


Acrescente-se, no caso dos deputados federais, que o processo eleitoral se dá separadamente nas 27 unidades da federação, cada uma funcionando, para este fim, como um sistema político autônomo. Para um país historicamente carente de organização partidária, dificilmente alguém poderia conceber um conjunto de regras pior que o vigente.


II. Voto distrital


Com a ressalva feita acima a respeito da combinação entre os níveis federal e estadual, o voto distrital pode trazer benefícios substanciais, em qualquer das duas modalidades, puro ou misto. Para não estender demasiadamente este texto, vou me referir aqui apenas ao voto distrital puro.


Pensando em separado sobre cada um dos três níveis federativos, o distrital puro pode ser recomendado por sua simplicidade. Tomando como exemplo as eleições para a Câmara Federal, cada estado seria dividido em tantos distritos quantas as vagas a preencher; em São Paulo, teríamos 70 distritos, cada um elegendo um deputado. Cada partido apresentando um (e só um) candidato por distrito, a vaga cabe àquele que obtiver a maioria simples (ou absoluta, se a lei assim o determinar) dos votos.


Uma segunda vantagem do distrital puro parece-me ser um enorme incentivo à participação. Advirtamos que incentivo é uma coisa, participação efetiva é outra. No mundo inteiro, a participação efetiva é influenciada por numerosos fatores, e por isso variam bastante ao longo do tempo, entre regiões, entre graus educacionais etc. Mas é certo que o sistema distrital puro reduz drasticamente o custo da informação para o eleitor, o que por si só representa um importante estímulo. Custo de informação menor, maior incentivo a participar, portanto participação potencialmente mais alta. Nessa linha de raciocínio, podemos também dar como provável um círculo virtuoso: mais participação, maior potencial de interesse pelas políticas públicas, mais vigilância e fiscalização por parte do eleitor. Maior accountability, lembrando aqui a expressão inglesa que diz tudo isso de uma vez. Com mais informação, motivação, proximidade geográfica entre eleitor e candidato e uma eleição em geral polarizada – muito mais parecida com a de prefeito que com a de deputado no atual sistema – é plausível pensar numa melhoria substancial nas bases do sistema político.


No sistema vigente, o eleitor não se identifica muito com os partidos, pelas razões que apontei acima, e tampouco com o seu candidato individual a deputado, porque não o elegeu num pleito majoritário e em confronto direto. Esta é uma das razões (uma das…) da debilidade dos vínculos entre representantes e representados, ou seja, do desligamento do parlamentar em relação à sua base (qualquer base). Ele não se sente pressionado a prestar contas ou a justificar suas posições, o eleitor ou não as conhece ou não encontra formas de pressionar.


Em terceiro lugar, o voto distrital cria a possibilidade de se trabalhar CONTRA a eleição de determinado candidato. Esta vantagem decorre da simplicidade do mecanismo – semelhante a uma eleição para prefeito; da facilidade de visualizar os lados que se enfrentam, e do caráter em geral mais polarizado desse tipo de eleição. No sistema vigente, tal possibilidade obviamente não existe. Basta lembrar que a apresentação pelos partidos de suas respectivas listas de candidatos necessariamente se reduz ao desfile mais ou menos macabro de fotos e currículos pela TV que todos conhecemos. Um parlamentar conhecido como corrupto precisará, no máximo, gastar mais dinheiro para se reeleger; resistência ele não enfrentará nenhuma.


Por último, o voto distrital puro permite pensar na prática norte-americana do recall, ou voto revocatório de mandato. É a idéia de os eleitores “deselegerem” um parlamentar que a seu ver haja desonrado os compromissos assumidos. Eu não morro de amores pelo recall; penso que é um mecanismo a ser empregado de maneira judiciosa e infreqüente, sob pena de tumultuar o sistema da representação política. Mas não vejo possibilidade alguma de sua adoção dentro do sistema vigente. Tempos atrás, um grupo de juristas cogitou implantá-lo sem mudar a mecânica eleitoral, o que me pareceu um redondo disparate.


III. Distrital para vereador nas cidades com mais de 200 mil habitantes


(conforme indicação acima)


CONCEITOS


Lista aberta e lista fechada


A lista aberta (adotada no Brasil) é uma forma de combinar o sistema eleitoral proporcional, permitindo que o eleitor escolha o candidato de sua preferência na lista apresentada por seu partido. Ao votar num indivíduo dentro da lista, ele na verdade está dando dois votos, pois escolhe aquele candidato específico e sufraga ao mesmo tempo a legenda do partido. Se ele não quiser escolher um candidato individual, pode votar só na legenda. Na lista fechada – utilizada em quase todos os países da Europa -, a convenção partidária ordena, ou seja, hierarquiza os candidatos segundo sua ordem de preferência. As implicações do emprego de um método ou do outro são fáceis de perceber. Com a lista aberta, têm mais chances de eleição os candidatos que gastam mais em suas campanhas, os mais conhecidos do público (donde, as chamadas “celebridades”) ou aqueles que têm uma forte base regional (os chamados “currais”). Com a lista fechada, as direções partidárias ficam fortalecidas e podem, em tese, intervir com certa eficácia no processo.


Tal intervenção, naturalmente, pode se dar para o bem ou para o mal. Elas podem usar tal prerrogativa para aumentar as chances de candidatos que previsivelmente terão um papel importante na próxima legislatura, ou que possuam conhecimentos especializados importantes (em tributação, por exemplo); mas podem também empregá-la de modo arbitrário, a fim de se encastelarem como oligarquias ou para excluir candidatos que não sejam de seu agrado. Mas num caso como noutro há uma vantagem para o eleitor: a transparência. Nos meses que separam a convenção da eleição, ele terá condições de reunir informações detalhadas acerca das listas de vários partidos e optar por aquela que, em conjunto, lhe pareça mais idônea.


Voto distrital e proporcional


As expressões “voto distrital” e “voto proporcional” dizem respeito ao que tecnicamente se designa como sistema eleitoral: o conjunto de regras por meio do qual os votos dos cidadãos são convertidos em determinada distribuição das cadeiras no Congresso entre os partidos políticos. São, porém, expressões leigas, eivadas de certas imprecisões que podem distorcer seriamente as questões em debate. A razão é esta: sistemas eleitorais não são distritais ou proporcionais; são majoritários ou proporcionais.


Majoritários, como o termo indica, quando a regra de decisão é a maioria. Nossa eleição presidencial, por exemplo, segue a regra da maioria: o candidato com a maioria de votos se elege, os outros perdem. Os votos dados ao candidato vencedor são, digamos assim, “aproveitados”; os dados aos perdedores são esterilizados, ou seja, não produzem nenhum efeito.


Nos sistemas proporcionais, a regra de decisão é a proporção. Em nossas eleições para a Câmara Federal, por exemplo, as 513 cadeiras são divididas entre os diferentes partidos em parcelas tão próximas quanto possível das proporções (percentuais) do total de votos populares que eles hajam recebido nas urnas. Mesmo que um partido A tenha muito mais votos que um partido B, os votos dados a B produzirão algum efeito: darão direito a um certo grau de representação. Não serão esterilizados.


Dessa distinção fundamental decorrem, por um lado, uma controvérsia filosófica meio sem saída e, por outro, dezenas de modelos técnicos de sistema eleitoral que tratam de amenizar efeitos negativos de uma e outra concepção.


Do ponto de vista filosófico, qual dos dois princípios é mais democrático, o majoritário ou o proporcional? Democracia significa captar tanto quanto possível as preferências e matizes de opinião existentes na sociedade, por menores que sejam, ou induzi-las a se juntar em grupos maiores, potencialmente majoritários? Ao representar politicamente os cidadãos, há mais justiça em acentuar o que os diferencia e separa ou o que os une e assemelha?


Também podemos indagar, num plano menos abstrato, se são mais democráticos os países que elegem seus representantes (pensemos nos deputados federais) com base num método ou no outro.


Os Estados Unidos empregam o método majoritário. Cada estado é dividido em circunscrições uninominais – distritos de um só representante; em cada distrito, elege-se o candidato que obtém a maioria dos votos. O outro (porque raramente há um terceiro) está fora: não tem direito a um pedaço da vaga. O Brasil utiliza o método proporcional. Deixando de lado o nível econômico e quaisquer considerações sociais, culturais etc, faz sentido dizer que um dos dois, nós ou eles, é mais democrático? Ou, mais amplamente, Estados Unidos e Inglaterra, majoritários, são menos ou mais democráticos que Alemanha ou Itália, proporcionais? Neste nível de generalidade, eu não vejo como essa controvérsia possa ter um fim.

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