29 março 2009

O PROCURADOR, OS FIDALGOS, OS MALCRIADOS DE FUZIL E OS LOUROS DE OLHOS AZUIS

via VEJA.com: Blog | Reinaldo Azevedo de Reinaldo Azevedo em 27/03/09
LEITOR, VAI AQUI UM TEXTO LONGO. EU O COLOCO NA CATEGORIA DOS "ARTIGOS DE FORMAÇÃO"
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Procurador, juiz, policial, autoridades públicas, enfim, numa democracia, existem para promover e/ou garantir que se promova a justiça. Se a esse substantivo se cola um adjetivo, qualquer que seja ele, está reduzido o seu alcance. O qualificativo que, hoje em dia, mais amiúde, se casa àquele nome é "social". "Justiça social" é, por natureza, uma expressão mais restrita do que "justiça". E cumpre que não se confundam os palcos. Quem faz "justiça social' no lugar onde se deve fazer "justiça" opera, na prática, uma fraude intelectual. O parágrafo seguinte é adaptação de uma consideração que fiz num texto bem antigo. É possível certamente filosofar em qualquer língua. Mas um pouquinho de alemão ajuda. Porque esse idioma facilita a identificação dos liames entre, por exemplo, o caso Eliana Tranchesi, a Operação Castelo de Areia e os "brancos de olhos azuis" que fabricaram a crise internacional. Como?

Tenho apontado, não é de hoje, o que chamo de Zeitgeist (espírito do tempo) militante e justiceiro que contamina o Brasil. Não chega a ser uma militância ativa — em alguns casos, é. Palavra mais adequada do que "Zeitgeist", ou a ser empregada em conjunto, para designar a esfera em que vivemos, lembra-me um colega jornalista versado em alemão, é "Weltanschauung", cujo significado em português pode ser "visão de mundo" ou, ainda, "ideologia". Embora os sentidos acima sejam bons para "Weltanschauung", procurem um dicionário de alemão, ela é mais ou menos intraduzível — sobretudo porque a possibilidade de fundir palavras parece emprestar ao idioma interstícios e tonalidades irreproduzíveis. Vejam lá: procurem o significado de "Welt" (a primeira acepção é "mundo", "universo") e depois de "Anschauung" (convicção, ponto de vista). Quando falamos de uma "Weltanschauung", estamos, na verdade, tratando de algo mais entranhado na vida e na cultura do que dá a entender a nossa "visão de mundo". Trata-se de um condicionamento do olhar e do pensamento — ou, eventualmente, da morte do pensamento.

Leitores, alguns até meus camaradinhas (ooops!) me perguntam por que defender Eliana Tranchesi. Eu não defendi nem defendo ninguém. E, com efeito, não haveria porquês particulares: não somos amigos; jamais nos falamos; não freqüentamos o mesmo ambiente social; jamais comprei uma roupa na sua loja. Tantas vezes, Deus do céu!, escrevi aqui que a melhor prova de que o cidadão comum está protegido pelas leis se manifesta quando quem as transgride é punido segundo as regras, não segundo as idiossincrasias e marés influentes de opinião!

O que penso da sentença e da decretação da prisão nessa fase do processo, isso já expressei em outros posts. Podem discordar à vontade — as contraposições civilizadas estão publicadas. Só não me venham com a cascata de que a análise é desinformada porque, se pouco me importa o que digam do que digo, é prudente não me tomar por trouxa. Os advogados que leram os textos sabem muito bem que estão amparados em sólida argumentação legal, ainda que discordem das minhas escolhas. O que me incomoda nessa história toda — e esse incômodo se estende à tal Operação Castelo de Areia (mais uma vez, uma PF cheia de picardia ao batizar operações) — é justamente a vocação justiceira e que busca casos particulares para servir de exemplo. Ora, se Eliana Tranchesi ou qualquer outra pessoa cometeram ilegalidades, têm de pagar pelo que fizeram. Segundo o andamento do devido processo legal. MAS NÃO ME PEÇAM, PORQUE É INÚTIL, PARA CONDESCENDER COM O ERRO PARA QUE SE POSSA, ENTÃO, PRATICAR ACERTOS. Porque isso não acontecerá.

Todos os indivíduos, numa democracia, têm direito ao devido processo legal. E ele deve ser único, orientado por leis e princípios. Se uma autoridade está empenhada em usar um caso para ilustrar uma militância, para dar um exemplo, para servir de instrução à sociedade, para ser didático, então o sujeito que serviu de instrumento dessa ação de esclarecimento, por mais bandido que seja, tornou-se, de fato, uma vítima. Mas isso é o menos relevante. Junto com esse "justiçamento de advertência", naufraga também o estado de direito.

A fala perigosa
ATENÇÃO: AINDA QUE A PRISÃO DA EMPRESÁRIA ELIANA TRANCHESI VENHA A SE MOSTRAR JUSTA, CORRETA, SEM QUALQUER TRANSGRESSÃO AO CONJUNTO DE LEIS QUE TEMOS, a fala do procurador federal Matheus Baraldi Magnani, na entrevista coletiva que concedeu ontem, ilustra à perfeição o momento em que a "Justiça social" ocupa as prerrogativas que são da "JUSTIÇA", SEM QUALIFICATIVOS.

Baraldi é bastante jovem. Tem 32 anos. Uma barbicha só esboçada, mas cuidadosamente cultivada, ajuda a conferir à sua juventude a marca de uma época e revela o espírito do tempo. Comentando ontem a prisão de Eliana, como se ela estivesse já condenada em última instância, ele disparou: "Isso demonstra que pelo menos uma parte do Judiciário já está disposta a admitir a existência de organização criminosa sem que haja um sujeito malcriado e com um fuzil na mão no topo de uma favela". Aí as coisas se agravam muito. Essa fala não torna apenas Eliana menos segura. O que ele pensa está na linguagem. É fato: essa fala, sem dúvida, melhora a posição de um "sujeito malcriado com um fuzil na mão, no topo de uma favela" e piora a dos que não portam o fuzil.

Crimes de classe e fidalgos
Ora, então Eliana não está sendo mais julgada e/ou punida pelos crimes de que é acusada, mas por pertencer a uma determinada extração da sociedade que ficaria sempre impune. Ao se lhe aplicar uma sentença que pretende ser exemplar — quase 100 anos de prisão —, o que se quer é enviar um recado. Ou, pior ainda, o que se quer é punir os crimes de uma classe social. A síntese de Baraldi é devastadora para o direito. A análise do que disse consegue ser ainda mais assustadora.

Observem que ele deixa entrever a suspeita de que está numa luta, numa cruzada. Ele nem mesmo se põe na posição de quem defende o acerto de uma decisão tomada pelo Judiciário. Porque ele não se sente à vontade nessa defesa. Observem que, segundo se entende, só "uma parte do Judiciário" demonstra virtude saneadora. A outra, certamente, deixou-se corromper por valores menores. Assim, ele não sai em defesa "do" Judiciário, mas do "seu" Judiciário, que é, sabemos todos, o "bom" Judiciário.

Sua fala pode ser pensada palavra a palavra. Eliana pertence a uma "organização criminosa", mas aquele que porta um fuzil no topo de um morro é apenas um "sujeito malcriado". Até as pedras sabem que isso corresponde a uma hierarquia de crimes. Ele não parou por aí: "Essa sentença claramente fala em organização criminosa, e a razão da prisão não foi outra senão essa. É possível perceber que os tribunais já estão preparados hoje para recusar a tese de que organização criminosa é coisa de desgraçado com fuzil na mão". ENTENDERAM? A sentença e a prisão ILUSTRAM UMA TESE. Baraldi não quer mesmo que duvidem de suas intenções: "A sociedade questionava o resultado possível dessa operação porque são pessoas de alto poder aquisitivo, influência política etc. Havia o temor de que o resultado fosse nenhum, ou ameno. O Judiciário passa por uma transformação e atinge, sim, os fidalgos".

Sentença
Em sua sentença, diga-se, a juíza Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Criminal de Guarulhos, sustenta: "Merece maior reprovação posto que a conduta do acusado, proveniente de cobiça em busca da acumulação de riqueza proveniente de meios ilícitos, visava angaria recursos bilionários através de lesão ao erário." Ora, basta saber ler para que se entenda que a "cobiça em busca de acumulação" enfreia um crime. Pois é... Crimes sem cobiça pessoal parecem, nessa leitura, menos graves.

Eu me lembro de um: o mensalão! Não era, digamos, cobiça pessoal. O "erário" era lesado, mas em nome da construção de um projeto de poder. Segundo o espírito do tempo e a visão de mundo que se vai consolidando — e como isso é velho!!! —, os crimes em nome do coletivo parecem são mais amenos. Se a ambição distingue para pior o ato criminoso, então a ambição pessoal é um agravante na exata e oposta medida em que o coletivo se torna um atenuante. Vai ver é por isso que o mensalão nunca mandou ninguém para a cadeia. Nesse particular, de que lado terá ficado ou ficará aquele "Judiciário que está mudando"?

Leiam, caminhando para os finalmentes, este trechinho que está num texto do Portal G1: "De acordo com o procurador, é impossível estimar o valor das fraudes cometidas pelos acusados. Mas ele afirma que as fraudes encontradas pela Receita Federal e as multas já impostas ao grupo pela União e pelo governo paulista alcançam mais de R$ 1 bilhão." A bem poucos, a quase ninguém, ocorrerá apontar a impropriedade que ajuda a dar volume ao dinheiro. Qualquer que seja o critério, as fraudes não podem ser somadas às multas para indicar o valor total das ações ilegais. É simples: o objetivo da multa, com acréscimos, é compensar o que foi deixou de ser pago ao erário. Se alguém deixa de recolher R$ 100 devidos, e o Estado o obriga a pagar R$ 200 como punição, a sonegação não é de R$ 300; continua a ser R$ 100. Mas parece que Eliana Tranchesi só se torna mesmo aquela "fidalga" de manual se a conta chegar, no mínimo, a R$ 1 bilhão.

Afinal, Eliana é uma "loura de olho azul", ainda que seja castanho. Os olhos a que se referia o Apedeuta também eram olhos de classe.

Encerro mesmo: assino este texto hoje, amanhã ou depois de amanhã, ainda que os fatos venham a provar que a sentença contra a empresária foi justíssima. Em qualquer dos casos, o espírito que a anima degrada o estado de direito. E uma das minhas tentativas é enxergar além do nevoeiro. A exemplo do que fiz, lá atrás, nos primórdios do governo Lula, quando notei o gosto da Polícia Federal de Márcio Thomaz Bastos pelos holofotes. Eles iluminavam bem mais do que a cara das pessoas arrancadas da cama. Zeitgeist! Weltanschauung!

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