30 abril 2009

O DIREITO SE ACHA NA LEI, NÃO NA RUA. E TRIBUNAL NÃO É ARENA DE ARRANCA-RABO...

via VEJA.com: Blog | Reinaldo Azevedo de Reinaldo Azevedo em 30/04/09
Celso de Mello, o decano do Supremo: ele quer o direito achado na lei

É realmente uma pena que a coluna do ministro Joaquim Barbosa o tenha afastado uma vez mais do Supremo Tribunal Federal. Por dois motivos: a) porque a Corte fica sem a sua lente e as suas luzes; 2) porque não pôde presenciar a homenagem que o tribunal fez ao ministro Gilmar Mendes por ocasião do seu primeiro ano na presidência do tribunal. Celso de Mello, o decano da Casa, que paira um tanto acima das divergências em razão de sua ponderação, de seu aprumo técnico e de sua antiguidade na função, leu um discurso realmente memorável, que entra para a história do estado de direito no Brasil. E exibiu, com fartura de dados — que nem sempre são notícia — o trabalho que vem fazendo o presidente do Supremo. Sua fala foi seguida do apoio irrestrito de outros ministros, do advogado geral da União, José Antonio Dias Toffoli, e do advogado Alberto Zacharias Toron, que falou em nome da Ordem dos Advogados no Brasil. As instituições respiram no país, embora rondadas por uma gripe: o espírito de porco do populismo.

Que a Justiça brasileira seja lenta e, eventualmente, injusta, isso não é segredo para ninguém Resolve-se esse problema com reformas e medidas concretas, não com revoluções e proselitismo ideológico. Até porque as revoluções costumam ser fontes legitimadoras das novas injustiças influentes, e o proselitismo turva o debate com o anseio de reparações que estão fora da órbita do justo, do equilíbrio, e, não raro, flertam com o justiçamento. Celso de Mello, em sua fala (íntegra de todos os discursos aqui), lembrou algumas das ações — e não de conversa mole — empreendidas pelo tribunal, sob o comando de Mendes, que resultam numa Justiça mais célere e atenta aos interesses da população. E ela será tão mais eficiente quanto mais se ativer às leis, à Constituição, não ao alarido das ruas.

O MEMBRO DE UMA SUPREMA CORTE QUE NÃO SOUBER QUE, MUITAS VEZES, É PRECISO PRESERVAR O POVO DE SUA PRÓPRIA SANHA JUSTICEIRA NÃO MERECE OCUPAR AQUELA CADEIRA. PORQUE, ENTÃO, LHE FALTARÃO ESTOFO, FORMAÇÃO INTELECTUAL, LEITURA, DISCERNIMENTO.

- Numa democracia, os tribunais informam as ruas, mas as ruas não informam os tribunais.
- Numa democracia, os juízes ensinam ponderação ao povo, mas o povo não ensina fúria aos juízes.
- Numa democracia, os juízes ensinam tolerância aos intolerantes; mas os intolerantes não ensinam intolerância ao juiz.
- Numa democracia, em suma, os juízes, se preciso, preservam o povo de si mesmo, ensinando que nem mesmo a ele é lícito, no calor das demandas da hora, solapar as bases que garantem os direitos a todo e a cada um.

Por isso um juiz tem de ouvir o espírito das leis, não o espírito das ruas. Porque o espírito das ruas ou é a voz indistinta da maioria, embriagada de sua força, ou é a voz de uma minoria influente que transforma em demanda coletiva o seu interesse particular. A lei? A lei é de todos. Não enxerga classe, cor de pele, origem, confissão religiosa ou o que seja.

A JUSTIÇA É CEGA PARA QUE POSSA ENXERGAR, NÃO PARA QUE POSSA FAZER JUSTIÇA CEGA.

Assim, as palavras de Celso de Mello, exaltando o trabalho do tribunal e o notável desempenho de Gilmar Mendes na defesa do estado de direito, assumem, sim, uma dimensão histórica. Especialmente num momento em que se tenta levar ao tribunal justamente o alarido que confunde; a demagogia que extrai do povo não o desejo de Justiça, mas a indistinção de matizes; a denúncia não de uma eventual disfunção da Corte, mas de sua suposta ineficiência para fazer a "verdadeira justiça". Na democracia em que vige o estado de direito, a "verdadeira justiça" é só aquela que se faz consoante com as leis.

Repudiei aqui, há dias, um artigo do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Ayres Britto, também do STF. Lastimei um conceito que ele lançou ali ao defender o esdrúxulo procedimento do tribunal, que tem dado posse, nos estados, a governadores ilegítimos, porque não-eleitos pela maioria. Inventou Sua Excelência um estranho conceito que atende por "solução democrática de menor extensão". Não sei o que é isso. A Constituição Brasileira não sabe o que é isso. Quem entende de "solução democrática de menor extensão" é Hugo Chávez. Joaquim Barbosa, seu colega de tribunal, no infeliz episódio em que atacou Gilmar Mendes, recomendou a este que ouvisse as ruas. Não! Mendes, Barbosa e todos os outros têm de ouvir apenas as leis. O Congresso ouve as ruas. Ou faremos eleição direta para juízes. A democracia, em escala universal — no universo em que existe ao menos —, houve por bem não adotar tal procedimento para uma corte suprema.

E Celso de Mello foi verdadeiramente maiúsculo ao afirmar, dirigindo-se a Gilmar Mendes:
"Quando da posse de Vossa Excelência na Presidência desta Suprema Corte, salientei que incumbe, ao Supremo Tribunal Federal, o desempenho do dever que lhe é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal.
Acentuei, então, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte possui a exata percepção dessa realidade e tem, por isso mesmo, no desempenho de suas funções, um grave compromisso com o Brasil e com o seu povo, e que consiste em preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos, sendo este Tribunal o garante da integridade da ordem constitucional, impedindo, assim, com atuação firme e independente, que razões de mero pragmatismo ou de simples conveniência de grupos, instituições ou estamentos prevaleçam e deformem o significado da própria Lei Fundamental."

ESSA É A VOZ DE UM MAGISTRADO.

E Celso de Mello foi adiante:
"Na realidade, esta Corte Suprema tem permanecido vigilante na proteção aos direitos e garantias fundamentais de qualquer cidadão.
É preciso que fique claro, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte não julga em função da qualidade das pessoas ou de sua condição econômica, política, social ou funcional."

Perfeito! A luta de classes — ou arranca-rabo, para fazer jus a certas manifestações —não pode, desde a Suprema Corte, tentar trincar a ordem constitucional no país, ignorando fundamentos da doutrina para tentar fazer justiça com a própria toga. É certo que os ministros têm divergências; é certo que nem todos ali, para ficar num clichê, têm a mesma cabeça e, pois, a mesma sentença. Podem e devem divergir. Mas a divergência que não se restringe à interpretação da lei e ao modo de aplicar a norma não é divergência, mas sabotagem. E ela não ameaça o adversário da hora; ameaça é aquele que precisa do tribunal para ter reparado o seu direito agravado: a população.

Os demais ministros se manifestaram. Falaram também, como informo no início, o advogado geral da União e o representante da OAB. Mello lista as realizações do Supremo e se evidencia, então, além da bruma, o trabalho de longo prazo de Gilmar Mendes. Trabalho realizado com destemor. Se há um homem no país que não cede às patrulhas, é ele. Se há uma autoridade que não teme a delinqüência a soldo que tomou conta da Internet, especialmente nos blogs de larápios (alguns são ladrões de dinheiro público mesmo), é ele. E, por isso, a delinqüência organizada o escolheu como alvo.

Sob o pretexto de que o Supremo deve ser de todos, querem arrastá-lo para as ruas, onde, então, ele seria apenas de alguns. O Supremo, ontem, disse claramente que pretende ficar com as leis e com a democracia. EM SUA MAIS LONGA EXTENSÃO.
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