18 outubro 2016

A Mão Visível: Encruzilhada

A Mão Visível: Encruzilhada:


Se há um trabalho fácil, deve ser elaborar o orçamento federal. Afirmação algo injusta, reconheço, mas me concedam um par de parágrafos e prometo tentar esclarecê-la. 

O orçamento apresenta duas características cruciais. A primeira é seu tamanho: em 2017 os gastos federais (sem contar transferências a estados e municípios) devem superar com folga a marca de R$ 1,2 trilhão, correspondente a cerca de 20% do PIB. A segunda, tão importante quanto, é a extraordinária rigidez do gasto. 

Algo como 80% do orçamento consiste de gastos obrigatórios, dentre os quais as rubricas mais relevantes referem-se ao INSS (40% do gasto, ou 8% do PIB) e pessoal (20% do gasto, 4% do PIB). É neste sentido que a elaboração do orçamento é uma tarefa fácil: regras determinam quase todo o gasto, não os envolvidos na discussão da proposta orçamentária.

O restante, 20%, é denominado gasto discricionário, porque, em tese, caberia ao Executivo (ao formular o orçamento) e ao Legislativo (ao aprová-lo) a discussão política sobre a destinação dos recursos públicos. Mas apenas em tese.

De fato, pouco mais da metade deste dispêndio corresponde a mais uma “jabuticaba”: o “gasto discricionário não-contingenciável”, isto é, despesas sobre as quais, na prática, o governo não detém controle, como o gasto mínimo em Saúde e Educação, que representa quase 10% do orçamento, ou 2% do PIB.

Posto de outra forma, a margem de manobra do orçamento, ou seja, o espaço para a discussão política dos recursos públicos, é ínfima: menos de 2% do PIB.

Sabendo disto não pude conter uma gargalhada ao ler a coluna de Marcos Nobre no Pravda (perdão, Valor Econômico) afirmando que, ao aprovar o teto do gasto (PEC 241) “o sistema político está abrindo mão de arbitrar essas margens de manobra que, no final das contas, são a sua própria razão de ser, o fundamento de seu poder”. 

Nada mais distante da realidade: esta margem desapareceu há tempos e encolherá ainda mais caso a PEC 241 não seja aprovada. As prioridades do orçamento de 2017 (ou 2018, 2019, 2020...) são ditadas, em larga medida, pelas prioridades do constituinte de 1988 (e demais emendas a partir de então), este sim completamente descrente da capacidade do mundo político de atender as demandas da sociedade brasileira, recorrendo ao engessamento do gasto em proporção inédita.

É bom que se diga que a PEC 241, embora ataque a primeira propriedade do orçamento (o tamanho do gasto), ainda que em ritmo glacial, não tem qualquer efeito, por si só, na segunda. 

A rigor, ela apenas explicita limites à despesa pública, que, na ausência de uma discussão adicional e mais profunda sobre a rigidez do gasto, condenam a própria existência do teto. 

Na verdade, sem reformas que atenuem este problema, não é difícil concluir que a redução do orçamento federal relativamente ao PIB, somado à expansão do gasto previdenciário e à rigidez dos demais gastos obrigatórios só pode levar a dois resultados.

Caso o teto perdure, o governo federal se reduziria a uma agência de pagamento de salários e pensões. No caso oposto o gasto continua a crescer e o teto sumirá; assim a inflação fará disfarçadamente o que o Congresso se recusar a fazer.


A caminho da responsabilidade fiscal começa com a PEC 241, mas, de forma alguma, terminará nela.

05 janeiro 2016

O pontificado laico e a República


Por Luiz Werneck Vianna
Com sua intervenção sobre os ritos a serem obedecidos no processo de tramitação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o Supremo Tribunal Federal atravessou o Rubicão, passando por cima do voto do relator, Edson Fachin, e fez ouvidos moucos à veemência com que o ministro Dias Toffoli sustentava não passar dos limites, que o Poder Judiciário deveria reservar-se diante dos atos emanados do Poder que representa a soberania popular — dois ministros a que não se podem atribuir posições adversas ao governo e a seus dirigentes. Finda a votação, um país perplexo pôde constatar que mais um passo tinha sido dado em direção a um governo de juízes — às favas os escrúpulos com as obras de Habermas e de Dworkin, referências cultuadas entre magistrados —, categoria agora elevada ao status de um pontificado laico, com a confirmação de que não há mais limites para a patológica judicialização da política reinante entre nós.
É verdade que trazemos inscrito no código genético do nosso processo de modernização a intervenção do juiz em matéria crucial em sociedades capitalistas, qual seja a regulação pela Justiça do Trabalho do valor da mercadoria força de trabalho, quando, nos idos do regime da Carta de 1946, um magistrado arbitrava o quantum do salário “justo” por cima das partes envolvidas nos conflitos salariais e, no caso de desobediência, sujeitava a sanções os sindicatos e seus dirigentes. Convertia-se, então, um fato mercantil em jurídico. No remoto ano de 1976, em Liberalismo e Sindicato no Brasil (Paz e Terra, Rio de Janeiro, primeira edição), o autor deste artigo se empenhou na análise dessa esdrúxula transfiguração.
A obra dos constituintes da Carta de 1988, de fato, democratizou o país, com as ressalvas apontadas pelo jurista Mauricio Godinho Delgado em matéria da legislação sindical (Curso de Direito do Trabalho, LTR), embora tenha recepcionado — em razão da sua desconfiança quanto às instituições da democracia representativa em concretizar os ideais de igualdade que ela acolheu — a tradição brasileira, do Império à República, de confiar ao Poder Judiciário papéis de pedagogia cívica sobre a cidadania. Nesse sentido, o constituinte criou novas instituições, como o mandato de injunção, redesenhou o Ministério Público com uma configuração inédita no Direito Comparado que parece ter saído da prancheta de um Oliveira Vianna, constitucionalizou a Defensoria Pública, as ações civis públicas e os juizados especiais, entre outras inovações.
Tudo o que é vivo na sociedade foi recoberto por essa malha amplíssima, que não deixou de crescer com a legislação subsequente e com uma jurisprudência cada vez mais criativa dos tribunais, sempre citados em registro positivo os casos do reconhecimento das relações homoafetivas, o do aborto de fetos anencéfalos e a demarcação de terras indígenas no Estado de Roraima. A legislação eleitoral, fato da política, não passou imune à intervenção dos tribunais, que derrubou a cláusula de barreira, introduzida pelo legislador, para que os partidos viessem a ter acesso ao Parlamento, com resultados, como ora se constata, em tudo diversos, por sua carga negativa, dos casos acima citados, que encontraram soluções benfazejas.
As razões de fundo do crescimento exponencial da litigação nos tribunais, tão bem descrita em artigos deste jornal por José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, não encontram sua explicação apenas no comportamento de atores singulares, até porque litigar tem custos, ao menos de tempo, e os resultados são sempre incertos e, em regra geral, demorados. Elas, ao contrário, derivam da perda de credibilidade e da capacidade de atração dos partidos políticos, de uma vida associativa frágil e destituída de meios para negociar conflitos, não restando outro recurso a uma cidadania desamparada e fragmentada senão recorrer à Justiça. O atual gigantismo do Judiciário e a monumentalidade arrogante de suas sedes são a contraface, como consensualmente registra a bibliografia, da falta de República e de suas instituições.
Intuitivo que a judicialização da política vem trazendo consigo a politização do Judiciário, em particular dos seus órgãos superiores. Não se pode argumentar, como tão frequente, que nossas instituições são resilientes e estão funcionando — diante do quadro que aí está talvez nem o Doutor Pangloss ousasse uma platitude de gênero tão naïf. Há uma situação de alto risco em nossas instituições e no tecido da vida social. Estamos à beira de um precipício, já foi escrito em algum lugar. César Benjamin, analista respeitado, diagnosticou em debate recente a possibilidade de uma convulsão social, ainda remota, é certo, mas que não deve ser descartada, pelo clima de cólera que grassa por aí nas ruas, nos aeroportos e nos restaurantes grã-finos, com seus frequentadores endinheirados.
É preciso que, em alto e bom som, se diga que muito desta crise que ora nos atormenta talvez não se revestisse da dramaticidade atual se uma canetada do Supremo Tribunal Federal não tivesse passado por cima da vontade do legislador que criou a cláusula de barreira para os partidos políticos. Nesta hora em que convergem a judicialização da política e a da saúde e a intervenção do Judiciário em políticas públicas do governo do Estado do Rio de Janeiro, é de lembrar a ação republicana dos médicos David Capistrano da Costa Filho e Antonio Sergio Arouca, intelectuais públicos que pavimentaram o caminho, por dentro dos partidos efetivamente existentes, do Parlamento e fora deles, para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), hoje à margem da República e dependente da discrição de ações judiciais para poder funcionar. A Roma dos pontífices da Renascença, Maquiavel que nos diga, jamais poderia ser uma República.
___________
Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio. É coautor do livro A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, Editora Revan.
Artigo publicado originariamente no Estado de São Paulo, edição 3.1.2016.

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24 abril 2015

A Guerra do PT

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O PT julga que está em guerra. É o que está escrito, com todas as letras, nas “teses” apresentadas pelas diversas facções que compõem o partido e que serão debatidas no 5.º Congresso Nacional petista, em junho.

De que guerra falam os petistas? Contra quem eles acreditam travar batalhas de vida ou morte, em plena democracia? Qual seria o terrível casus belli a invocar, posto que todos os direitos políticos estão em vigor e as instituições funcionam perfeitamente?

As respostas a essas perguntas vêm sendo dadas quase todos os dias por dirigentes do PT interessados, antes de tudo, em confundir uma opinião pública crescentemente hostil ao “jeito petista” de administrar o País. O que as “teses” belicosas do partido fazem é revelar, em termos cristalinos, o tamanho da disposição petista em não largar o osso.

“Precisamos de um partido para os tempos de guerra”, conclama a Articulação de Esquerda em sua contribuição para o congresso do partido. Pode-se argumentar que essa facção está entre as mais radicais do PT, mas o mesmo tom, inclusive com terminologia própria dos campos de batalha, é usado em todas as outras “teses”. Tida como “moderada”, a chapa majoritária O Partido que Muda o Brasil avisa que “é chegado o momento de desencadear uma contraofensiva política e ideológica que nos permita retomar a iniciativa”.

A tendência Diálogo e Ação Petista conclama os petistas a fazer a “defesa dos trabalhadores e da nação”, como se o Brasil estivesse sob ameaça de invasão, e diz que as “trincheiras” estão definidas: de um lado, a “direita reacionária”; de outro, os “oprimidos”. A chapa Mensagem ao Partido quer nada menos que “refundar o Estado brasileiro”, por meio de uma “revolução democrática” – pois o “modelo formal de democracia”, este que vigora hoje no Brasil, com plena liberdade política e de organização, “não enfrenta radicalmente as desigualdades de renda e de poder”.

Da leitura das “teses” conclui-se que o principal inimigo dos petistas é o Congresso, pois é lá que, segundo eles dizem, se aglutinam as tais forças reacionárias. O problema – convenhamos – é que o Congresso representa a Nação, o povo. Se o Congresso resiste a aceitar a agenda do PT, então a solução é uma “Constituinte soberana e exclusiva”, cuja tarefa é atropelar a vontade popular manifestada pelo voto e mudar as regras do jogo para consolidar o poder das “forças progressistas” – isto é, o próprio PT.

Uma vez tendo decidido que vivem um estado de guerra e estabelecidos quem são os inimigos, os petistas criam a justificativa para apelar a recursos de exceção – o chamado “vale-tudo”. O principal armamento do arsenal petista, como já ficou claro, é o embuste. O partido que apenas nos últimos dez anos teve dois tesoureiros presos sob acusação de corrupção, que teve importantes dirigentes condenados em razão do escândalo da compra de apoio político no Congresso e que é apontado como um dos principais beneficiários da pilhagem da Petrobrás é o mesmo que diz ter dado ao País “instrumentos inéditos” para punir corruptos. Há alguns dias, o ex-presidente Lula chegou ao cúmulo de afirmar que os brasileiros deveriam “agradecer” ao PT por “ter tirado o tapete que escondia a corrupção”.

É essa impostura que transforma criminosos em “guerreiros do povo brasileiro”, como foram tratados os mensaleiros encarcerados. Foi essa inversão moral que levou o governador petista de Minas, Fernando Pimentel, a condecorar o líder do MST, João Pedro Stédile, um notório fora da lei, com a Medalha da Inconfidência, que celebra a saga libertária de Tiradentes. A ofensiva dos petistas é também contra a memória nacional.

Ao explorar a imagem da guerra para impor sua vontade aos adversários – inclusive o povo –, o PT reafirma seu espírito totalitário. A democracia, segundo essa visão, só é válida enquanto o partido não vê seu poder ameaçado. No momento em que forças de oposição conseguem um mínimo de organização e em que a maioria dos eleitores condena seu modo de governar, então é hora de “aperfeiçoar” a democracia – senha para a substituição do regime representativo, com alternância no poder, por um sistema de governo que possa ser totalmente controlado pelo PT, agora e sempre.

18 fevereiro 2015

Câmara no comando


PorO material jornalístico produzido pelo Estadão é protegido por lei. Para compartilhar este conteúdo, utilize o link:http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-desmonte-dos-incentivos-imp-,1635866

O desenho parlamentarista que ganhou a recém-iniciada gestão de Eduardo Cunha, com a transferência do poder político para a Câmara, é a expressão mais forte da consistência que o PMDB obteve em sua reação à tentativa do PT de reduzir seu espaço no contexto partidário.
Mas o curso dos acontecimentos na Câmara não pode mais ser atribuído apenas a essa disputa. Ela está na raiz do comportamento hostil do PMDB, mas encontra sintonia com o sentimento de reafirmação do Poder Legislativo, há anos subjugado pela força do Executivo, que Eduardo Cunha habilmente materializou em uma espécie de voto de desconfiança próprio dos regimes de gabinete.
Nesse aspecto reside a maior dificuldade do governo. A afirmação do PMDB, que tem motivação estritamente partidária, contaminou a Câmara e atinge frontalmente o PT, cujo comportamento sectário e excludente, tanto no governo quanto no ambiente legislativo, produz agora seus efeitos.
O insucesso da articulação política do governo, portanto, não se explica apenas pela insuficiência dos perfis com delegação presidencial para exercê-la, embora esta seja uma realidade indiscutível. É um enredo que o PT construiu na fase Lula ao dar ao aliado tratamento menor baseado em resultados políticos de vida curta.
De bela fachada, o governo era casa de alicerces frágeis. Quando explodiram as manifestações de junho de 2013, viu-se que o País não tivera gestão nos 12 anos de poder petista.
O PMDB assistiu à soberba do rival na base aliada com a paciência de quem sabe que o diabo é o diabo porque é velho e esperou o melhor momento para dar o bote. E o melhor momento do partido corresponderia necessariamente ao pior momento do governo.
Era, pois, uma questão de tempo que o PT não viu passar, consumido pelas denúncias de corrupção que o levou ao banco dos réus e à condenação pelo Poder Judiciário de seus dirigentes mais históricos. Passou à negação como método, perdeu capital político expressivo, e volta agora à mesma situação do mensalão, ampliada em dimensão e gravidade.
É nesse ambiente que prospera a tese do impeachment, que diverte o PSDB, mas que tem origem no mesmo PMDB que aprisionou o governo Dilma e que deverá perder força com a divulgação dos nomes de parlamentares do partido alcançados pelo inquérito do "petrolão"no Supremo Tribunal Federal, prevista para os próximos dias.
O que apenas nivela por baixo a base de sustentação do governo, o que não melhora a situação, apenas a agrava.

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14 julho 2014

Os 800 anos da Magna Carta

por PAULO ROBERTO DE ALMEIDA - O ESTADO DE S.PAULO14 Julho 2014 |

Dentro de pouco menos de um ano (mais exatamente em 15 de junho de 2015), a Magna Carta completará 800 anos. Os interessados em conhecer o seu conteúdo, em inglês moderno, podem consultar no site dos Arquivos Nacionais americanos o linkhttp://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/translation.html. Uma explicação contextualizada sobre o seu significado histórico, e sobre a influência que ela teve na formação do constitucionalismo americano e no próprio espírito do povo americano, figura nestes dois outros links da mesma instituição, bastante instrutivos, por sinal:http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/ ehttp://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/legacy.html.
A Carta é uma espécie de obrigação formal assumida por um rei substituto com barões ingleses revoltados, mas ela constitui, sem dúvida alguma, a base de todas as liberdades modernas, a do princípio democrático, a do governo pelo consentimento dos governados, a da taxação com representação, a do respeito à propriedade pessoal e a do devido processo legal. "Nenhum homem livre", lê-se num de seus parágrafos, "será preso ou destituído de suas posses, ou considerado fora da lei, ou exilado, ou de alguma forma prejudicado (...), salvo mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pela lei do país. A ninguém será negado o direito ou a justiça." Antes de apor suas assinaturas, os barões confirmavam: "Todos os costumes e liberdades acima citados, que nós garantimos existir neste reino que a nos pertence, têm de ser observados por todos, religiosos ou laicos, e todos devem respeitá-los com respeito a todos os demais".
Seria interessante, a esse respeito, focar sobre o caso brasileiro para tentar determinar, exatamente, até onde ainda não chegamos em relação à aplicação plena dos princípios da Carta. Os barões da Inglaterra medieval estavam se revoltando contra um rei ladrão, João Sem Terra, que foi obrigado a assinar um compromisso de consultar os seus súditos nos casos especificados na Magna Carta. No nosso caso é um pouco diferente, o que complica as coisas: aqui talvez haja uma conivência entre os barões e os ladrões.
Quando os nossos barões - que por enquanto são só ladrões - se revoltarem contra a prepotência do Estado, contra as exações fiscais do príncipe, contra a falta de representação real no corpo parlamentar, contra as deformações da democracia, contra a corrupção (que eles mesmos patrocinam, ao comprar parlamentares, ao sustentar lobistas, ao subsidiar partidos mafiosos), contra as políticas especiais de puxadinhos e improvisações (que eles mesmos, ademais, pedem ao Estado todo-poderoso), quando, enfim, os barões capitalistas conseguirem conduzir uma fronda empresarial contra o Estado, contra os corruptos que eles mesmos colocaram no poder, então, talvez, nos aproximaremos um pouco, pelo menos, dos valores e princípios da Carta de 1215.
Estamos um pouco atrasados, como todos podem constatar. Mas não só nós.
Os franceses também, pois só foram conduzir uma fronda aristocrática depois que os ingleses já haviam decapitado um rei, que abusava justamente de seus poderes. Estes consentiram com o início de outro reinado, depois de uma breve experiência republicana - um pouco sangrenta, para qualquer padrão -, mas resolveram tirar esse mesmo rei, desta vez pacificamente, depois que ele resolveu ser tão arbitrário quanto o decapitado, pretendendo retomar os antigos hábitos absolutistas da sua família. Os ingleses, então, "importaram" uma nova dinastia do continente, aprovaram um Bill of Rights que limitava sensivelmente - na verdade, podava totalmente - os poderes do novo soberano e desde então vivem pacificamente com os seus soberanos de teatro (mais para commedia dell'arte do que tragédias shakespearianas). Em todo caso, eles são a mais velha democracia do mundo, em funcionamento contínuo desde 1688.
Foram seguidos mais tarde, ainda que no formato republicano, mas absorvendo todas as bondades da Magna Carta e do Bill of Rights, por seus expatriados da Nova Inglaterra e das demais colônias, que se revoltaram justamente quando os ingleses, ou melhor, o seu rei empreendeu uma tosquia muito forte nos rendimentos dos colonos, decidindo aumentar as taxas sobre o chá e cobrar outros impostos. Ah, os impostos...
A fronda dos americanos foi uma revolução, como eles a chamam, mas com isso criaram a primeira democracia moderna da História, que se mantém até hoje, com a mesma Constituição original e algumas poucas emendas. Enquanto isso, os franceses estavam guilhotinando o seu rei, para construírem um poder ainda centralizado e opressor.
Não se pode, obviamente, comparar a Constituição americana com nenhuma das nossas sete Cartas Constitucionais - com dois ou três grandes remendos no curso de nossa História autoritária - e as dezenas, quase uma centena, de emendas à mais recente delas (talvez não a última), tratando dos assuntos mais prosaicos. Tem uma que regula trabalho de domésticas. Alguma outra Constituição abriga algo tão bizarro? Nada contra trabalhadores domésticos, mas não creio que eles devam figurar numa Constituição.
Enfim, os nossos barões, que também são extorquidos pelos príncipes que nos governam, não parecem ter muita disposição para mudar o cenário, menos ainda para decapitar algum soberano. Talvez devessem: quando a carga fiscal passar de 40%, por exemplo, quem sabe eles resolvem fazer a sua fronda empresarial? Afinal de contas estamos falando de dois quintos da riqueza produzida pela sociedade que são apropriados pelo Estado, o que representa duas derramas coloniais. Pela metade disso Tiradentes e seus amigos se revoltaram contra a prepotência da Coroa. Libertas quae sera tamen?
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

21 maio 2014

Conservadores e Direita


Por João Pereira Coutinho*, para a Revista Exame (edição 1064, de 30/04/2014)
"Explicar o conservadorismo é uma atitude pou­co conservadora. Não há nada para explicar: quando existem valores ou instituições que sobreviveram aos testes do tempo, não é o conservador que tem de justificar essa sobrevi­vência.
São os outros, progressistas de várias escolas ou feitios, que devem mostrar por que motivo o que existe e resiste tem de ser alterado ou destruído.
No fundo, a diferença entre conservadores e progressistas ­pode ser resumida em duas perguntas. Os progressistas, confrontados com uma possibilidade de mudança, perguntam: ‘E por que não?’ Os conser­va­dores preferem a pergunta inversa: ‘E por que sim?’
Resumindo uma longa história, o conservadorismo é o tipo de ideologia para pessoas que não estão apaixonadas por elas próprias. Não é fácil, eu sei. Um dos projetos da modernidade foi colocar o indivíduo no centro do palco, alimentando nele uma importância narcísica que seria cômica se não tivesse conduzido a resultados tão trágicos.
O conservadorismo é a ideologia que relembra aos homens nossas limitações intelectuais para conduzir a sociedade rumo a um fim perfeito. Sabemos menos do que pensamos.
Controlamos menos do que desejamos. Nada disso seria problemático se a política fosse uma atividade solitária, como pintar uma tela ou escrever um romance.
Falhar, nessas áreas, pode ser instrutivo ou mesmo nobre. O problema é que a política tem implicações sobre a vida de milhares ou milhões de seres humanos. Falhar, em política, é usar vidas alheias na busca de projetos individuais de poder.
Acreditar que uma espécie intelectualmente imperfeita pode conduzir a humanidade para resultados perfeitos será sempre a típica receita para o desastre. 
Tendo isso em mente, duas categorias de seres humanos merecem destaque: os revolucionários e os reacionários. Ambos têm um entendimento do conservadorismo que oscila entre a ignorância e a má-fé.
Os primeiros identificam o conservadorismo com todo tipo de aberrações autoritárias, ou mesmo totalitárias, que são o oposto do conservadorismo cético e pluralista que se procura defender.
Pensar que Hitler ou Mussolini eram ‘conservadores’ não é apenas ignorância filosófica. É tentar transformar o conservadorismo — uma ideologia geneticamente antiutópica e antirrevolucionária — em algo que o conservadorismo não é.
O mesmo se aplica à longa casta de reacionários que transportam para a política o tipo de mentalidade radical que o conservadorismo condena.
Recusar o presente com nostalgias do passado — ou, no mínimo, com a ideia insana de que é possível e desejável travar o progresso — é tão perigoso e patológico como procurar utopias futuras. 
Existe, porém, uma questão evidente que merece reflexão: por que motivo a palavra ‘conservador’ (ou a vulgar expressão ‘ser de direita’) adquiriu contornos tão pecaminosos no Brasil e no meu próprio país, Portugal?
A resposta não é metafísica, mas his­tórica: com duas ditaduras de direita no cardápio, houve uma espécie de deslegitimização da direita nos dois países.
Como se o autoritarismo do regime militar brasileiro ou do Estado Novo lusitano esgotasse todos os sentidos da palavra ‘direita’, reduzida a um conceito repressivo.
Esse abuso é tão absurdo quanto acreditar que uma pessoa de esquerda apoia, por defi­nição, a abolição da propriedade privada, o fim da liberdade individual ou o uso de campos de ­trabalhos forçados — como foram os gulags na antiga União Soviética. 
Um conservador não deve intrometer-se em discussões de fanáticos — de esquerda ou de direita — que reduzem a complexidade da sociedade política a uma luta maniqueísta entre bons e maus.
Um conservador sabe que é possível e desejável repudiar os ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici, no Brasil, e António de Oliveira Salazar, em Portugal, da mesma forma que repudiamos Fidel Castro e seu algoz Che Guevara.
Em suma, um conservador entende que defender ditadores não é coisa de gente civilizada.
Felizmente, existe hoje uma nova geração de conservadores — no Brasil e em Portugal — que recusa esses maniqueísmos pela afirmação fundamental de que existem valores básicos para o funcionamento de qualquer sociedade decente e afluente.
Para essa geração, a democracia não está em discussão: como disse o ex-premiê inglês Winston Churchill, a democracia continua sendo o pior regime político, com a exceção de todos os outros.
É também uma geração que preza as liberdades individuais; que respeita as diferentes concepções do bem que existem em qualquer sociedade pluralista; e que não espera do Estado a solução milagrosa para todos os problemas. 
Esse último quesito é especialmente importante em dois países com fortíssima tradição patrimonialista. No caso português, o Estado foi, desde o início do século 12, o agente central da independência, da segurança e da exploração econômica interna e externa.
Uma herança que os portugueses deixaram aos brasileiros, como se comprova em qualquer pesquisa de opinião pública sobre o assunto: sempre que a questão lida com uma maior intervenção estatal, existe uma maioria que responde afirmativamente a essa intromissão.
É uma maioria que, apesar de tudo, está encolhendo à medida que a corrupção, a ineficiência e a burocracia estatais continuam a fazer do Brasil o eterno país de um futuro que continua adiado.
Razão tinha o intelectual americano Irving Kristol: as principais lições políticas acontecem quando somos forçados a encarar a realidade.
É fato que essa nova geração de conservadores dos dois lados do Atlântico vem encontrando em autores clássicos, como Edmund Burke e Benjamin Disraeli, ou em contemporâneos, como John Kekes e Roger Scruton, sólidos alicerces para a reflexão e a ação política.
Com eles, é possível aprender que a política não é um exercício criativo, em que uma elite impõe sobre a comunidade um projeto, um plano, uma visão. Como alguém dizia, sempre que um político tem visões, o melhor é ele procurar um médico.
Governar é atender às necessidades reais de uma comunidade real. É saber servir essa sociedade — e nunca servir-se dela para cumprir torpes desejos ou ambições.
Governar é reformar o que não funciona, conservando o que merece ser conservado. Governar é jamais impor sobre a vida de terceiros uma única hierarquia de valores e comportamentos.
Governar é respeitar a lei e não ceder aos ca­prichos arbitrários dos homens. ­Governar é garantir esse espaço de li­ber­dade em que cada indivíduo ­procura melhorar sua condição de vida e, ainda segundo o grande economista Adam Smith, participar do sistema de liberdade natural a que hoje damos o nome de mercado.
Finalmente, governar é exercer o poder — temporariamente, humildemente —, e não detê-lo com a avareza doentia de quem se agarra a um tesouro roubado. Quem se julga dono de um país só pode tratar os cidadãos como servos ou escravos.
Tudo isso pode parecer pouco para quem tem da política uma visão inflamada e romântica. A política não pode ser um exercício inflamado e romântico, mas realista e prudente.

Até porque existem lugares mais adequados e privados para as inflamações saudáveis do romantismo.”

* Doutor em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, onde também é professor do Instituto de Estudos Políticos. É colunista do Correio da Manhã (Portugal) e da Folha de S. Paulo (Brasil)
http://www.jpcoutinho.com/

27 novembro 2013

Alma de continente

YOANI SÁNCHEZ, no Estadão de 27/11/2013
Os contrastes, os anacronismos, são parte inseparável de Cuba. As sombras e as luzes compõem essa realidade que entrou aos tropeços no século 21. Um poeta definiu a insularidade com uma frase que pode ser confirmada a cada passo: "A maldita circunstância da água por todos os lados". É isso mesmo: mar, mar e mar, por todos os lados.
Não só as águas azuis onde as crianças mergulham, mas também um mar de nostalgias, isolamentos, sonhos e balseros. Um país difícil de decifrar, até para os que nasceram nele. Aqui, tudo anda mais devagar, como se a vida fosse mostrada em câmara lenta. O efeito que as velharias provocam é reforçado pelos casarões para os quais ainda não chegou a hora de dar lugar a arranha-céus. Joias arquitetônicas com colunas rachadas pelos anos e pela falta de recursos. Pisos de mosaicos e arabescos, os abajures com lágrimas de cristal conservados pela avó. O esplendor ao lado da necessidade.
Longe do centro histórico, com seus hotéis e opulentos restaurantes, estende-se a verdadeira Havana. A qualquer hora, surpreende a quantidade de gente pelas ruas. Estamos diante de uma cidade pedestre, em parte porque durante décadas a compra e venda de carros foi proibida. Por isso, o cubano está acostumado a andar ou a esperar horas a fio pelo ônibus. Isto reforça a impressão de imobilismo.
A espera é um dos elementos inerentes à identidade da ilha. Uma piada popular garante que o "ioga deve ter sido inventado em Cuba", dada a paciência das pessoas nas enormes filas e com os prolongados governos. Mas, na hora da diversão e do baile, é como se o ponteiro dos minutos andasse mais rápido, saltando. Hoje, Havana conserva algo desse glamour notâmbulo que a tornou famosa como "a Babilônia do Caribe" na primeira metade do século 20.
A dualidade monetária - entre o peso cubano e o conversível - determina o tipo de diversão à qual se pode ter acesso. Os mais pobres fazem suas bebidas em casa, com álcool barato, um pouco de açúcar e limão. Mas, de uns anos para cá, também proliferam os bons restaurantes, conhecidos como paladares. A cozinha crioula mistura-se com a internacional nesses lugares que prosperaram graças às flexibilizações econômicas dos últimos anos.
Os turistas são seus principais clientes, mas também os cubanos no exílio ou a emergente classe empresarial. Perto da meia-noite, pode até aparecer algum figurão do governo que trocou o verde-oliva por um traje à paisana. Entretanto, a magia principal não está no presente. Curiosamente, as duas atrações principais ainda são o passado e o futuro.
O que foi, com seus carros antigos e o orgulho de ter uma cidade que compartilhava astros em cartaz com Paris, Nova York e Buenos Aires. Apesar disso, uma força contrária o obriga a olhar para o que virá. Porque Cuba é um país com potencial oculto.
Aqui, o absurdo está em toda parte. Desde a especialista em estomatologia que come uma pizza enquanto atende o paciente com dor de dente até o trâmite complicado para excluir o defunto da lista do mercado de produtos racionados. Inexplicável cotidianidade, mas também cativante. A unidade habitacional principal do cubano está nos edifícios conhecidos como solares, antigas mansões que o tempo e as dificuldades econômicas foram dividindo e povoando com múltiplas famílias. O pátio central, o banheiro coletivo, o terraço onde os adolescentes criam pombas, as roupas de cor indecifrável penduradas nos varais. O dominó, a solidariedade das pessoas e uma mãe que berra o nome do filho da sacada: "Yunisleidy!"
Uma semana não é suficiente, um hotel não é suficiente, um olhar da janela do ônibus climatizado também não. Cuba deve ser vivida em suas ruas para se compreender suas contradições. Como o mercado ilegal de material de construção que floresce a poucos metros da Praça da Revolução.
Porque Cuba é uma ilha com anseios de continente, ávida por ser mais, por ir mais depressa, por chegar mais longe. Um país adolescente no qual cresceram braços e pernas, mas dentro de uma roupa apertada demais. Visitar sua realidade não deixa ninguém indiferente. Como um postal sépia. Em lugar de emoldurá-lo, somos obrigados a entrar nele, para viver sua realidade, sofrê-la e amá-la. TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
YOANI SÁNCHEZ É JORNALISTA CUBANA E AUTORA DO BLOG GENERACIÓN Y

07 novembro 2013

O Brasil e a ‘nação diaspórica’

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A gloriosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece cotas raciais na representação parlamentar do povo. Ignorando tanto a Constituição quanto a Justiça, a CCJ aprova qualquer coisa que emane de um grupo de interesse organizado, o que é um sintoma clamoroso da desmoralização do Congresso. Nesse caso, viola-se diretamente o princípio fundamental da liberdade de voto. Por isso, a PEC de autoria dos petistas João Paulo Cunha (SP) e Luiz Alberto (BA) provavelmente dormirá o longo sono dos disparates nos escaninhos da Câmara. Mas ela cumpre uma função útil: evidencia o verdadeiro programa do racialismo, rasgando a fantasia com que se adorna no debate público.
O argumento ilusionista para a introdução de cotas raciais no ingresso às universidades residia na suposta desvantagem escolar prévia dos “negros” — algo que, de fato, é uma desvantagem prévia dos pobres de todas as cores de pele. A fantasia da compensação social começou a esgarçar-se com a extensão das cotas raciais para cursos de pós-graduação, cujas vagas são disputadas por detentores de diplomas universitários. A PEC aprovada na CCJ comprova que as políticas de raça não são motivadas por um desejo de corrigir distorções derivadas da renda. O racialismo exibe-se, agora, como ele realmente é: um programa de divisão dos brasileiros segundo o critério envenenado da raça.
De acordo com a PEC, na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas estaduais, será reservada uma parcela de cadeiras para parlamentares “negros” equivalente a dois terços do percentual de pessoas que se declaram pretas ou pardas no mais recente censo demográfico. As bancadas “negras” não serão inferiores a um quinto ou superiores à metade do total de cadeiras. Os deputados proponentes operam como despachantes de ONGs racialistas e expressam, na PEC, a convicção política que as anima: o Brasil não é uma nação, mas um espaço geopolítico no qual, sob a hegemonia dos “brancos”, pulsa uma “nação africana” diaspórica. A presença parlamentar de bancadas “negras” representaria o reconhecimento tácito tanto da inexistência de uma nação brasileira quanto da existência dessa nação na diáspora.
Os eleitores, reza a PEC, darão dois votos: o primeiro, para um candidato de uma lista geral; o segundo, para um candidato de uma lista de “negros”. A proposta desvia-se, nesse ponto, de uma férrea lógica racialista. Segundo tal lógica, os eleitores deveriam ser, eles também, bipartidos pela fronteira da raça: os “negros” votariam apenas na lista de candidatos “negros” e os demais, apenas na lista geral. A hipótese coerente não violaria o princípio da liberdade de voto, pois estaria ancorada num contrato constitucional de reconhecimento da nação diaspórica. Como inexiste esse contrato, os racialistas optaram por um atalho esdrúxulo, que escarnece da liberdade de voto com a finalidade de, disfarçadamente, inscrever a nação diaspórica no ordenamento político e jurídico do país.
Nações não são montanhas, rios ou vales: não existem como componentes do mundo natural. Na expressão certeira de Benedict Anderson, nações são “comunidades imaginadas”: elas podem ser fabricadas na esfera da política, por meio das ferramentas do nacionalismo. A PEC não caiu do céu. A “nação africana” na diáspora surgiu no nacionalismo negro do início do século XX com o americano W. E. B. Du Bois e o jamaicano Marcus Garvey. No Brasil, aportou cerca de três décadas atrás, pela nau do Movimento Negro Unificado, entre cujos fundadores estava Luiz Alberto. No início, a versão brasileira do nacionalismo negro tingia-se com as cores do anticapitalismo. Depois, a partir da preparação da Conferência de Durban, da ONU, em 2001, adaptou-se à ordem vigente, aninhando-se no colo bilionário da Fundação Ford. “Afro-americanos”, nos EUA, e “afrodescendentes”, no Brasil, são produtos identitários paralelos dessa vertente narrativa.
O acento americano do discurso racialista brasileiro é tão óbvio quanto problemático. Nos EUA, o projeto político de uma identidade negra separada tem alicerces sólidos, fincados nas leis de segregação que, depois da Guerra de Secessão, traçaram uma linha oficial entre “brancos” e “negros”, suprimindo no nascedouro a possibilidade de construção de identidades intermediárias. No Brasil, em contraste, esse projeto choca-se com a noção de mestiçagem, que funciona como poderoso obstáculo no caminho da fabricação política de raças. A solução dos porta-bandeiras do nacionalismo negro é impor, de cima para baixo, a divisão dos brasileiros em “brancos” e “negros”. As leis de cotas raciais servem para isso, exclusivamente.
As diferenças históricas entre EUA e Brasil têm implicação direta na gramática do discurso político. Lá, o nacionalismo negro é uma proposição clara, que provoca um debate público informado — e, quando Barack Obama se define como mestiço, emerge uma resposta desconcertante no cenário conhecido da polaridade racial. Aqui, os arautos do nacionalismo negro operam por meio de subterfúgios, escondendo-se atrás do pretexto fácil da desigualdade social — e encontram políticos oportunistas, juízes populistas e intelectuais preguiçosos o suficiente para conceder-lhes o privilégio da prestidigitação.
“Tirem a máscara!” — eis a exigência que deve ser dirigida aos nossos racialistas, na hora em que apresentam a PEC do Parlamento Racial. Saiam à luz do dia e conclamem o Brasil a escrever uma nova Constituição, redefinindo-se como um Estado binacional. Digam aos brasileiros que vocês não querem direitos iguais e oportunidades para todos numa república democrática, mas almejam apenas a condição de líderes políticos de um movimento racial. Vocês não têm vergonha de ocultar seu programa retrógrado à sombra da persistente ruína de nossas escolas públicas?


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/o-brasil-a-nacao-diasporica-10704825
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04 novembro 2013

Sem complacência

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, no Estadão de 03/11/2013

As notícias da semana que terminou não foram auspiciosas, nem no plano internacional nem no local. Uma decisão da Corte Suprema da Argentina, sob forte pressão do governo, sancionou uma lei que regula a concessão de meios de comunicação. Em tese, nada de extraordinário haveria em fazê-lo. No caso, entretanto, trata-se de medida tomada especificamente contra o grupo que controla o jornal El Clarín, ferrenho adversário do kirchnerismo. Cerceou um grupo de comunicação opositor ao governo sob pretexto de assegurar pluralidade nas normas de concessão. Há, contudo, tratamento privilegiado para o Estado e para as empresas amigas do governo.

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07 julho 2013

Tempos difíceis

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
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POR FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, no Estadão de 07.07.2013.

Já se disse tudo, ou quase tudo, sobre os atos públicos em curso. Para quem acompanha as transformações das sociedades contemporâneas não surpreende a forma repentina e espontânea das manifestações.
Em artigo publicado nesta coluna, há dois meses, resumi estudos de Manuel Castells e de Moisés Naím sobre as demonstrações na Islândia, na Tunísia, no Egito, na Espanha, na Itália e nos Estados Unidos. As causas e os estopins que provocaram os protestos variaram: em uns, a crise econômico-social deu ânimo à reação das massas; em outros, o desemprego elevado e a opressão política foram os motivos subjacentes aos protestos.
Tampouco as consequências foram idênticas. Em algumas sociedades onde havia o propósito específico de derrubar governos autoritários, o movimento conseguiu contagiar a sociedade inteira, obtendo sucesso. Resolver uma crise econômico-social profunda, como nos países europeus, torna-se mais difícil. Em certas circunstâncias, consegue-se até mesmo alterar instituições políticas, como na Islândia. Em todos os casos mencionados, os protestos afetaram a conjuntura política e, quando não vitoriosos em seus propósitos imediatos, acentuaram a falta de legitimidade do sistema de poder.
Os fatos que desencadeiam esses protestos são variáveis e não necessariamente se prendem à tradicional motivação da luta de classes. Mesmo em movimentos anteriores, como a "revolução de maio" em Paris (1968), que se originou do protesto estudantil "por um mundo melhor", tratava-se mais de uma reação de jovens que alcançou setores médios da sociedade, sobretudo os ligados às áreas da cultura, do entretenimento, da comunicação social e do ensino, embora tivesse apoiado depois as reivindicações sindicais. Algo do mesmo tipo se deu na luta pelas Diretas-Já. Embora antecedida pelas greves operárias, ela também se desenvolveu a partir de setores médios e mesmo altos da sociedade, aparecendo como um movimento "de todos". Não há, portanto, por que estranhar ou desqualificar as mobilizações atuais por serem movidas por jovens, sobretudo das classes médias e médias altas, nem, muito menos, de só por isso considerá-las como vindas "da direita".
O mais plausível é que haja uma mistura de motivos, desde os ligados à má qualidade de vida nas cidades (transportes deficientes, insegurança, criminalidade), que afetam a maioria, até os processos que atingem especialmente os mais pobres, como dificuldade de acesso à educação e à saúde e, sobretudo, baixa qualidade de serviços públicos nos bairros onde moram e dos transportes urbanos. Na linguagem atual das ruas, é "padrão Fifa" para uns e padrão burocrático-governamental para a maioria. Portanto, desigualdade social. E, no contexto, um grito parado no ar contra a corrupção - as preferências dos manifestantes por Joaquim Barbosa (ministro presidente do Supremo Tribunal Federal) não significam outra coisa. O estopim foi o custo e a deficiência dos transportes públicos, com o complemento sempre presente da reação policial acima do razoável. Mas se a fagulha provocou fogo foi porque havia muita palha no paiol.
A novidade, em comparação com o que ocorreu no passado brasileiro (nisso nosso movimento se assemelha aos europeus e norte-africanos), é que a mobilização se deu pela internet, pelos twitters e pelos celulares, sem intermediação de partidos ou organizações e, consequentemente, sem líderes ostensivos, sem manifestos, panfletos, tribunas ou tribunos. Correlatamente, os alvos dos protestos são difusos e não põem em causa de imediato o poder constituído nem visam questões macroeconômicas, o que não quer dizer que esses aspectos não permeiem a irritação popular.
Complicador de natureza imediatamente política foi o modo como as autoridades federais reagiram. Um movimento que era "local" - mexendo mais com os prefeitos e governadores - se tornou nacional a partir do momento em que a presidenta chamou a si a questão e a qualificou primordialmente, no dizer de Joaquim Barbosa, como uma questão de falta de legitimidade. A tal ponto que o Planalto pensou em convocar uma Constituinte e agora, diante da impossibilidade constitucional disso, pensa resolver o impasse por meio de plebiscito. Impasse, portanto, que não veio das ruas.
A partir daí o enredo virou outro: o da relação entre Congresso Nacional, Poder Executivo e Judiciário e a disputa para ver quem encaminha a solução do impasse institucional, ou seja, quem e como se faz uma "reforma eleitoral e partidária". Assunto importante e complexo, que, se apenas desviasse a atenção das ruas para os palácios do Planalto Central e não desnudasse a fragilidade destes, talvez fosse bom golpe de marketing. Mas, não. Os titubeios do Executivo e as manobras no Congresso não resolvem a carestia, a baixa qualidade dos empregos criados, o encolhimento das indústrias, os gargalos na infraestrutura, as barbeiragens na energia, e assim por diante.
O foco nos aspectos políticos da crise - sem que se negue a importância deles - antes agrava do que soluciona o "mal-estar", criado pelos "malfeitos" na política econômica e na gestão do governo. O afunilamento de tudo numa crise institucional (que, embora em germe, não amadurecera na consciência das pessoas) pode aumentar a crise, em lugar de superá-la.
A ver. Tudo dependerá da condução política do processo em curso e da paciência das pessoas diante de suas carências práticas, às quais o governo federal preferiu não dirigir preferencialmente a atenção. E dependerá também da evolução da conjuntura econômica. Esta revela a cada passo as insuficiências advindas do mau manejo da gestão pública e da falta de uma estratégia econômica condizente com os desafios de um mundo globalizado.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO É SOCIÓLOGO E FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA 

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01 julho 2013

Demofobia em marcha

por Roberto Romano*, no Estadão de 30/06/2013

Norberto Bobbio, em artigo muito lúcido, mostra que a democracia surge dos choques entre a praça e o palácio. Ele cita Guicciardini: "Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou um muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e por que o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia". Atualizando a reflexão, Bobbio adianta que ainda não contamos com uma eficaz sociologia da praça. Manifestações de rua significam a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes. "Na democracia representativa (...) a praça é a mais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo" (Bobbio). Finaliza o pensador: "Palácio e praça são expressões polêmicas para designar, respectivamente, governantes e governados, sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...) Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair" (Il Palazzo e la Piazza).
No ofício de analisar as formas de atuação coletiva, leio com frequência políticos, colegas da universidade, estudantes, sindicalistas, profissionais da imprensa. Fiquei preocupado com as visões da praça expressas em várias entrevistas e textos. O foco dado à baderna e ao vandalismo diminuiu muito a percepção do importante fenômeno. Terra onde o Estado domina a sociedade e se põe a serviço de setores diminutos nas políticas públicas, o Brasil demonstra, desde sua origem histórica, a demofobia que preside o absolutismo. A certidão política de batismo vem do século 16, quando a razão de Estado está no auge. Para os governantes e intelectuais que defendem a razão estatal, o mundo divide-se, como expõe Guicciardini, citado por Bobbio, entre quem merece respeito, porque vive nos palácios, e a plebe que habita a praça. Tal assimetria estabelece uma divisão na ordem coletiva (acima os dirigentes, abaixo os "cidadãos comuns"). Ela é a marca dos Estados que ainda não conhecem os efeitos das revoluções democráticas. Neles a multidão dos que pagam impostos obedece sem questionar. E quem controla os impostos manda sem prestar contas. A força democrática de um país é medida pelo vigor, nele, da prática cunhada pelos revolucionários ingleses, a accountability. As revoluções modernas ensinaram aos soberanos lições básicas de responsabilidade.
Os conservadores atacam os "simples cidadãos", neles vendo ameaças ao poder estabelecido. Eles exorcizam o "perigo" representado pela soberania popular. Sempre que o elo político é invocado, do Renascimento ao século 21, o povo, com seus conflitos, é posto fora dos escalões estatais porque, na lição platônica, ele segue o contrário da harmonia. François Hotmann, jurista e autor do tratado intitulado Franco Galia, teme o Her omnes (Senhor Todo Mundo), apelido dado por Lutero à massa. Os documentos gerados na literatura grega ou romana mostram desconfiança no povo. Este, para os latinos, é o "populo exturbato ex profugo", o "vulgus credulum, imprudens vel impudens, stolidum", etc. (Zvi Yavetz: La Plèbe et le Prince). "O povo", diz Etienne de la Boétie, "não tem meios para bem julgar porque é desprovido do que fornece ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita nos outros. A multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, ela é persuadida pela autoridade de quem fala, e não pelas razões ditas" (Mémoires touchant l'Édit de Janvier 1562).
Gabriel Naudé, teórico do maquiavelismo que norteia o governo de Mazarino, diz ser preciso cautela com a "fera de múltiplas cabeças, vagabunda, errante, louca, estulta, sem freio, sem espírito nem julgamento. O juízo do povo sempre é tolo e seu intelecto, fraco. A populaça, fera cruel, enfurece e morde com frequência. Ela odeia as coisas presentes, deseja as futuras, celebra as pretéritas, sendo inconstante, sediciosa, briguenta, famélica de boatos, inimiga do repouso e da tranquilidade". A massa, arremata, é "inferior às feras, pior do que as feras e mil vezes mais tola dos que as feras" (Considérations Politiques sur les Coups d'État).
Donoso Cortés, fonte de terríveis governos, não enxerga na pobreza a origem das massas revoltas. A inveja e o desejo de poder atravessam a praça, açulada pelos demagogos: "O germe revolucionário reside nos desejos superexcitados da multidão pelos tribunos que a exploram e beneficiam. 'Sereis como os ricos', vejam aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias. 'Sereis como os nobres', vejam aí a fórmula das revoluções das classes médias contra os nobres. 'Sereis como os reis', vejam aí a fórmula das revoluções dos nobres contra os reis". As manifestações que abalam o Brasil seriam expressões do ressentimento invejoso conduzido por ambiciosos e delirantes.
O juízo negativo sobre a praça gerou o Brasil de Vargas, de 1964 e do AI-5. A esquerda clássica ostenta idêntica ojeriza à rua. Basta recordar a doutrina leninista sobre a "consciência vinda de fora". No Partido, máquina feita para derrubar o Estado burguês e construir a ditadura "proletária", intelectuais superiores definiriam o destino das massas. Caso contrário, Sibéria nelas.
É tempo de mudar a visão da praça. É tempo de saudar a democracia, apesar dos seus percalços. É tempo de recusar regimes plebiscitários que reduzem a praça ao monossilábico "sim", ou "não". É tempo de iniciar o diálogo democrático. A etimologia e a semântica proclamam: democracia é poder do povo, não de privilegiados e palacianos operadores do poder estatal. Se cair a praça, ensina Bobbio, tombam os palácios. E o remédio é oferecido por Donoso Cortés: a ditadura.
*Roberto Romano, professor de ética e filosofia na Unicamp, é autor, entre outros livros, de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva)

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26 junho 2013

Como tratar os professores profissionais


CLÁUDIO DE MOURA CASTRO, NO ESTADÃO DE 26/06/2013 *

Afirmou categoricamente o diretor de uma das melhores escolas de Desenho Industrial, na Suíça: "Aqui não temos profissionais do ensino. O que temos são profissionais que ensinam". Na escola de artes plásticas da Corcoran Gallery, em Washington, apenas artistas com ateliês estabelecidos e operando comercialmente podem candidatar-se para as posições docentes. O novo diretor do Media Lab do MIT nem sequer tem curso de graduação!
Nas boas universidades do mundo, é consagrada a prática de usar acadêmicos para ensinar nas áreas científicas e nas humanidades. Em contraste, as disciplinas profissionais devem ser ensinadas por profissionais.
Nas nossas terras, Érico Veríssimo só conseguiu ser professor de Literatura nos Estados Unidos, pois não tinha os diplomas exigidos aqui. Jacques Klein nunca foi convidado para ensinar piano em nenhuma universidade, pois, apesar de ser o maior pianista brasileiro, tampouco tinha os diplomas. Se Pelé fosse professor de futebol, o curso dele seria penalizado na avaliação, pois só tem o bacharelado.
Numa época em que quase não havia pós-graduação e, portanto, nem mestres nem doutores, fazia muito sentido criar incentivos robustos para estimular instituições e futuros professores a investirem em diplomas pós-graduados.
Mas é a velha história do pêndulo. Ora vai demais para um lado, ora volta para o outro. No momento, atingimos um paroxismo de diplomite. Esquecemos que diploma é um recibo de conhecimento, mas não pode virar o monopólio do saber. Mais ainda, há áreas em que o conhecimento não está nos diplomas, mas na experiência vivida no local de trabalho. Nelas, exigir diploma é quase uma garantia de falta do conhecimento prático que é o cerne do desempenho. De fato, sendo jovem a pós-graduação, não houve tempo para que muitos mestres e doutores adquirissem conhecimentos práticos. Com o regime de dedicação exclusiva, só podem adquiri-la se, ao longo da carreira docente, contrariarem a lei.
É hora de empurrar o pêndulo de volta para o centro. O folclore universitário está recheado de casos grotescos de profissionais consagrados substituídos por jovens doutores sem quaisquer distinções, além do diploma. Faz tempo, substituíram um professor com um reles bacharelado por um recém-doutor. A se notar, defenestraram o grande arquiteto Sérgio Bernardes.
Nunca aponho letrinhas ao meu nome, mas abro exceção, para demonstrar que não advogo em causa própria.
Como se contrapor ao furor e à máfia dos diplomados? O conserto é simples: Enquadram-se como equivalentes a especialista, mestre ou doutor pessoas com experiência profissional apropriada e ensinando aquelas disciplinas profissionais que correspondem a ela. Por exemplo, um compositor, um arquiteto, um advogado e um engenheiro que trabalham na área que ensinam deverão ser classificados como especialistas, mestres ou doutores. Isso, para efeitos de credenciamento, de salários ou de ocupar posições administrativas no departamento.
Igualmente necessário é que o MEC reajuste as suas avaliações, seja da graduação ou da pós-graduação. Hoje, as instituições são punidas com notas mais baixas por contratarem quem tem experiência, em vez de doutores que jamais trabalharam no assunto do curso. Sem mudar esse critério perverso, nada feito.
É inevitável que um profissional requisitado e valorizado no mercado seja um professor horista. Portanto, as avaliações não devem penalizar a instituição que contrata profissionais experientes nesse regime. Nessas disciplinas, valem mais algumas horas de aula do engenheiro consagrado do que o tempo integral do jovem doutor que jamais fez um projeto de verdade.
Atualmente, um professor sem pós-graduação ensinando Cálculo 1 penaliza a avaliação do curso. O certo é que um doutor sem experiência na sua disciplina profissionalizante deveria também reduzir a nota.
Não estou propondo a criação de um enquadramento honoris causa ou notório saber, por envolver um rito pesado, já que são critérios de exceção. Aqui tratamos de regras que deveriam ser comuns e correntes para muitas disciplinas.
Sugiro tratar como equivalentes ao de um pós-graduado os profissionais que têm experiência de trabalho na área da disciplina. Deve enquadrar-se como pós-graduado um engenheiro de sistemas, trabalhando na IBM, em redes de computação e ensinando esse mesmo assunto. Um compositor consagrado poderá ser considerado equivalente a um doutor.
Um engenheiro siderúrgico da Usiminas teria uma experiência profissional superior em densidade tecnológica à do encarregado de um alto forno em Itaúna. Um engenheiro da Microsoft seria mais experiente em sistemas operacionais do que alguém que trabalha na informática da prefeitura. O repertório técnico de um cardiologista do Einstein é mais amplo do que o de um médico que trabalha num hospital do interior.
Como sugestão, cinco anos de experiência na área do curso a ser ensinado seriam o mínimo para uma equivalência a mestre ou especialista. Para equivalência a doutor, pelo menos dez anos. Quanto mais sofisticado ou complexo o trabalho na empresa, mais elevada a equivalência. Quanto mais denso o nível tecnológico da empresa, mais alta seria a competência do candidato.
Esse enquadramento seria feito por comissões tripartites, formadas de profissionais da área, acadêmicos e representantes de empresas. Seria mais prático que as próprias Instituições de Ensino Superior (IES) tivessem suas comissões, fazendo o enquadramento do candidato e justificando o seu parecer. Caberia ao MEC apenas ratificar as recomendações.
Não há razões para crer que o ensino privado tenha interesse em inflacionar o currículo de algum professor, pois, quanto mais alto o classificarem, mais terão de pagar. E profissionais consagrados na área não são mais baratos do que jovens doutores.
* CLÁUDIO DE MOURA CASTRO, M.A., PH.D., É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO.