Por João Pereira Coutinho*, para a
Revista Exame (edição 1064, de 30/04/2014)
"Explicar o conservadorismo é uma
atitude pouco conservadora. Não há nada para explicar: quando existem valores
ou instituições que sobreviveram aos testes do tempo, não é o conservador que
tem de justificar essa sobrevivência.
São os outros, progressistas de várias
escolas ou feitios, que devem mostrar por que motivo o que existe e resiste tem
de ser alterado ou destruído.
No fundo, a diferença entre
conservadores e progressistas pode ser resumida em duas perguntas. Os
progressistas, confrontados com uma possibilidade de mudança, perguntam: ‘E por
que não?’ Os conservadores preferem a pergunta inversa: ‘E por que sim?’
Resumindo uma longa história, o
conservadorismo é o tipo de ideologia para pessoas que não estão apaixonadas
por elas próprias. Não é fácil, eu sei. Um dos projetos da modernidade foi
colocar o indivíduo no centro do palco, alimentando nele uma importância
narcísica que seria cômica se não tivesse conduzido a resultados tão trágicos.
O conservadorismo é a ideologia que
relembra aos homens nossas limitações intelectuais para conduzir a sociedade
rumo a um fim perfeito. Sabemos menos do que pensamos.
Controlamos menos do que desejamos.
Nada disso seria problemático se a política fosse uma atividade solitária, como
pintar uma tela ou escrever um romance.
Falhar, nessas áreas, pode ser
instrutivo ou mesmo nobre. O problema é que a política tem
implicações sobre a vida de milhares ou milhões de seres humanos. Falhar, em
política, é usar vidas alheias na busca de projetos individuais de poder.
Acreditar que uma espécie
intelectualmente imperfeita pode conduzir a humanidade para resultados
perfeitos será sempre a típica receita para o desastre.
Tendo isso em mente, duas categorias de
seres humanos merecem destaque: os revolucionários e os reacionários. Ambos têm
um entendimento do conservadorismo que oscila entre a ignorância e a má-fé.
Os primeiros identificam o
conservadorismo com todo tipo de aberrações autoritárias, ou mesmo totalitárias,
que são o oposto do conservadorismo cético e pluralista que se procura
defender.
Pensar que Hitler ou Mussolini eram
‘conservadores’ não é apenas ignorância filosófica. É tentar transformar o
conservadorismo — uma ideologia geneticamente antiutópica e antirrevolucionária
— em algo que o conservadorismo não é.
O mesmo se aplica à longa casta de
reacionários que transportam para a política o tipo de mentalidade radical que
o conservadorismo condena.
Recusar o presente com nostalgias do
passado — ou, no mínimo, com a ideia insana de que é possível e desejável
travar o progresso — é tão perigoso e patológico como procurar utopias
futuras.
Existe, porém, uma questão evidente que
merece reflexão: por que motivo a palavra ‘conservador’ (ou a vulgar expressão
‘ser de direita’) adquiriu contornos tão pecaminosos no Brasil e no meu próprio
país, Portugal?
A resposta não é metafísica, mas histórica:
com duas ditaduras de direita no cardápio, houve uma espécie de
deslegitimização da direita nos dois países.
Como se o autoritarismo do regime
militar brasileiro ou do Estado Novo lusitano esgotasse todos os sentidos da
palavra ‘direita’, reduzida a um conceito repressivo.
Esse abuso é tão absurdo quanto
acreditar que uma pessoa de esquerda apoia, por definição, a abolição da
propriedade privada, o fim da liberdade individual ou o uso de campos de trabalhos
forçados — como foram os gulags na antiga União Soviética.
Um conservador não deve intrometer-se
em discussões de fanáticos — de esquerda ou de direita — que reduzem a
complexidade da sociedade política a uma luta maniqueísta entre bons e maus.
Um conservador sabe que é possível e
desejável repudiar os ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici, no Brasil, e
António de Oliveira Salazar, em Portugal, da mesma forma que repudiamos Fidel
Castro e seu algoz Che Guevara.
Em suma, um conservador entende que
defender ditadores não é coisa de gente civilizada.
Felizmente, existe hoje uma nova
geração de conservadores — no Brasil e em Portugal — que recusa esses
maniqueísmos pela afirmação fundamental de que existem valores básicos para o
funcionamento de qualquer sociedade decente e afluente.
Para essa geração, a democracia não
está em discussão: como disse o ex-premiê inglês Winston Churchill, a
democracia continua sendo o pior regime político, com a exceção de todos os
outros.
É também uma geração que preza as
liberdades individuais; que respeita as diferentes concepções do bem que
existem em qualquer sociedade pluralista; e que não espera do Estado a solução
milagrosa para todos os problemas.
Esse último quesito é especialmente
importante em dois países com fortíssima tradição patrimonialista. No caso
português, o Estado foi, desde o início do século 12, o agente central da
independência, da segurança e da exploração econômica interna e externa.
Uma herança que os portugueses deixaram
aos brasileiros, como se comprova em qualquer pesquisa de opinião pública sobre
o assunto: sempre que a questão lida com uma maior intervenção estatal, existe
uma maioria que responde afirmativamente a essa intromissão.
É uma maioria que, apesar de tudo, está
encolhendo à medida que a corrupção, a ineficiência e a burocracia estatais
continuam a fazer do Brasil o eterno país de um futuro que continua adiado.
Razão tinha o intelectual americano
Irving Kristol: as principais lições políticas acontecem quando somos forçados
a encarar a realidade.
É fato que essa nova geração de
conservadores dos dois lados do Atlântico vem encontrando em autores clássicos,
como Edmund Burke e Benjamin Disraeli, ou em contemporâneos, como John Kekes e
Roger Scruton, sólidos alicerces para a reflexão e a ação política.
Com eles, é possível aprender que a
política não é um exercício criativo, em que uma elite impõe sobre a comunidade
um projeto, um plano, uma visão. Como alguém dizia, sempre que um político tem
visões, o melhor é ele procurar um médico.
Governar é atender às necessidades
reais de uma comunidade real. É saber servir essa sociedade — e nunca servir-se
dela para cumprir torpes desejos ou ambições.
Governar é reformar o que não funciona,
conservando o que merece ser conservado. Governar é jamais impor sobre a vida
de terceiros uma única hierarquia de valores e comportamentos.
Governar é respeitar a lei e não ceder
aos caprichos arbitrários dos homens. Governar é garantir esse espaço de liberdade
em que cada indivíduo procura melhorar sua condição de vida e, ainda segundo o
grande economista Adam Smith, participar do sistema de liberdade natural a que
hoje damos o nome de mercado.
Finalmente, governar é exercer o poder
— temporariamente, humildemente —, e não detê-lo com a avareza doentia de quem
se agarra a um tesouro roubado. Quem se julga dono de um país só pode tratar os
cidadãos como servos ou escravos.
Tudo isso pode parecer pouco para quem
tem da política uma visão inflamada e romântica. A política não pode ser um
exercício inflamado e romântico, mas realista e prudente.
Até porque existem lugares mais
adequados e privados para as inflamações saudáveis do romantismo.”
* Doutor em Ciência Política e Relações Internacionais
na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, onde também é professor do
Instituto de Estudos Políticos. É colunista do Correio da Manhã (Portugal) e da Folha de S. Paulo (Brasil)
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