Vácuo de ideias
Denis Lerrer Rosenfield - O Estado de S.Paulo, 27 de fevereiro de 2012
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Direito, Política e Sociedade.
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Filmagem com técnica "tilt-shift" sobre o Rio de Janeiro.
PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA QUINTA-FEIRA (16.02.2012)
Demétrio Magnoli
A blogueira Yoani Sánchez, os aeroportos privatizados, os policiais amotinados ─ por três vezes, sucessivamente, o PT exercitou a arte da duplicidade, desfazendo com uma mão o que a outra acabara de fazer. Há mais que oportunismo na dissociação rotinizada entre o princípio da realidade e o imperativo da ideologia. A lacuna abissal entre um e outro sugere que, aos 32 anos, o maior partido do País alcançou um estado de equilíbrio sustentado sobre o rochedo da mentira.
Peça número 1: O governo brasileiro concedeu visto de entrada a Yoani Sánchez, enviando um nítido sinal diplomático, mas Dilma Rousseff se negou a pronunciar em Havana umas poucas palavras cruciais sobre o direito de ir e vir, enquanto seus auxiliares reverenciavam o “direito” da ditadura castrista de controlar os movimentos dos cidadãos cubanos. A voz do PT emanou de fontes complementares, que pautaram as declarações presidenciais na ilha. Circundando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversos tratados internacionais e a Constituição brasileira, o assessor de política externa Marco Aurélio Garcia qualificou como um “problema de Yoani” a obtenção da autorização de viagem. Ecoando o pretexto oficial castrista, a ministra Maria do Rosário (dos Direitos Humanos!) declarou que Cuba não viola os direitos humanos, mas é vítima de uma violação histórica, representada pelo embargo norte-americano.
O alinhamento automático do PT à ditadura cubana revela extraordinária incapacidade de atualização doutrinária. A social-democracia europeia definiu sua relação com o princípio da liberdade política por meio de duas experiências históricas decisivas: a ruptura com os bolcheviques russos em 1917 e o confronto com a URSS de Stalin na hora do Pacto Germano-Soviético de 1939. O PT, contudo, não é um partido social-democrata. A sua inspiração tem raízes em outra experiência histórica, instilada no seu interior pelas correntes castristas que formam um dos três componentes originais do partido. Tal experiência é o “anti-imperialismo” da esquerda latino-americana, uma narrativa avessa ao princípio da liberdade política.
Peça número 2: Contrariando o renitente alarido petista de condenação da “privataria tucana”, o governo leiloou três aeroportos para a iniciativa privada, mas, ato contínuo, o PT regurgitou as sentenças ortodoxas que compõem um estribilho estatista reproduzido à exaustão. Uma nota partidária anunciou a continuidade da “disputa ideológica sobre as privatizações”, enquanto o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) se enredava na gramática da hipocrisia para formular distinções arcanas entre “concessões” e “privatizações”.
A explicação corrente sobre essa dissonância radical entre palavras e atos aponta as motivações eleitorais de um partido que descobriu as vantagens utilitárias de demonizar adversários indisponíveis para defender a própria herança. Há, contudo, algo além disso, como insinua uma declaração do presidente petista Rui Falcão, que classificou os “adversários” do PSDB como “privatistas por convicção”. O diagnóstico não faz justiça ao governo FHC, mas oferece pistas valiosas sobre a natureza de seu próprio partido.
O PT confusamente socialista das origens pouco se importava com o destino das empresas estatais, engrenagens do capitalismo nacional tardio erguido por Getúlio Vargas e aperfeiçoado por Ernesto Geisel. O partido só aderiu à ideia substituta do capitalismo de Estado após a queda do Muro de Berlim. No governo, aprendeu toda a lição: a rede de estatais configura um sistema de vasos comunicantes entre a elite política e a elite econômica, servindo ao interesse maior de perpetuação no poder e a uma miríade de interesses políticos e pecuniários menores. Os aeroportos foram privatizados para conjurar o espectro do fracasso da operação Copa do Mundo. Ao largo do território das convicções, sempre podem ser deflagradas novas privatizações: afinal, o partido antiprivatista tem como ícone José Dirceu, uma figura que prospera exercendo a função de intermediário entre o poder público e grandes grupos empresariais privados.
Peça número 3: O governo reprimiu o movimento dos PMs da Bahia e o PT condenou os atos criminosos de suas lideranças, mas não caracterizou a greve de militares como motim, deixando entreaberta a vereda para voltar a surfar na onda de episódios similares em Estados governados pela oposição. Os precedentes são conhecidos. Em 1992, quando o pefelista ACM governava a Bahia, o atual governador petista, Jacques Wagner, solidarizou-se com os PMs grevistas. Nove anos depois, quando a Bahia era governada pelo também pefelista César Borges, foi a vez do deputado Nelson Pelegrino, hoje candidato do PT à prefeitura de Salvador, proclamar seu apoio à greve dos PMs baianos. Durante a greve parcial de PMs paulistas, em 2008, no governo “inimigo” de José Serra, o PT formou uma comissão parlamentar de defesa do movimento.
A clamorosa duplicidade tem sua raiz profunda no papel desempenhado pelos sindicalistas do PT. A partidarização petista do movimento sindical moldou um corporativismo sui generis, que substitui os interesses da base sindical pelos do partido. No sindicalismo tradicional, tudo se deve subordinar às reivindicações de uma categoria. No sindicalismo petista, as reivindicações da base sindical devem funcionar como alavancas do projeto de poder do PT. Hoje, os PMs da Bahia são classificados como criminosos; amanhã, nas circunstâncias certas, PMs amotinados serão declarados trabalhadores comuns em busca de direitos legítimos.
O pensamento duplo não é um acidente no percurso do PT, mas, desde que o partido alcançou os palácios, sua alma política genuína. A tensão entre princípios opostos é real, mas não explosiva. Num país em que a oposição renunciou ao dever de discutir ideias, o partido governista tem assegurado o privilégio de rotinizar a mentira.
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por Carlos Alberto Sardenberg:
PUBLICADO NO GLOBO DESTA QUINTA-FEIRA
Carlos Alberto Sardenberg
Há um interessante debate sobre a privatização dos aeroportos feita pelo governo Dilma, mas há também o entendimento de que a mudança é positiva. E desde já, se a coisa funcionar mais ou menos, fica assim: o governo ganha dinheiro com os aeroportos, ao vender as concessões (R$ 26 bilhões numa tacada inicial!) e receber participação nos lucros e ainda consegue turbinar os investimentos nessa área crucial de infraestrutura.
Ou seja, se tivesse feito isso há mais tempo, o governo poderia ter utilizado em outros setores carentes, saúde, por exemplo, o dinheiro que gastou em aeroportos e o que teria recebido nas privatizações. E o público estaria mais bem servido. Por que não se fez antes? Porque o então presidente Lula não deixou. A conversa sobre privatização dos aeroportos não é nova, sobretudo no mundo privado.
No governo FHC, tratouse disso no segundo mandato, quando o presidente já estava desgastado e privatizar era pior do que qualquer outra coisa.
Em suas duas campanhas vitoriosas, Lula voltou a demonizar a privatização, com tal força que os próprios tucanos fugiram dela como diabo da cruz. Mas no segundo governo Lula, a partir de 2007, o tema voltou, quando a administração lidava com o caos aéreo que explodira no final de 2006. Foi quando as autoridades finalmente admitiram que todo o sistema aéreo era, literalmente, uma permanente ameaça de desastre: recursos mal administrados; os aeroportos sem estrutura adequada; falta de pessoal especializado, como os controladores de tráfego aéreo; radares com zonas cegas; falhas nas comunicações via rádio.
Feitas as contas, estava na cara que os recursos necessários para atacar todos esses problemas estavam muito acima da capacidade do governo federal. Conclusão óbvia: era preciso trazer dinheiro, empresas e gente nova para o setor. Vender concessões era a óbvia saída. Pelo menos três ministros do governo Lula disseram a este colunista que a privatização era inevitável. A necessidade venceria as resistências ideológicas.
Modelos foram analisados pelos técnicos da administração federal, alguns chegaram a ser anunciados. Por exemplo: em julho de 2007, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, deu prazo de 90 dias para que a Agência Nacional de Aviação Civil, Anac, e a Infraero apresentassem o projeto para o terceiro aeroporto de São Paulo. Ficou pelo caminho. A coisa simplesmente morreu, não se falou mais nisso.
Já havia então um projeto preparado por um grupo de empresas privadas para a construção desse aeroporto na região de Araucária.
Aliás, o projeto continua de pé, e voltou a ser lembrado agora que o governo fez três concessões privadas de aeroportos já existentes.
Por que não autorizar a construção de um outro, inteiramente e desde o início privado? Resumindo: a presidente Dilma e seu pessoal celebraram os leilões de Guarulhos, Viracopos e Brasília.
Disseram, corretamente, que se inicia uma nova era, com mais investimentos e mais eficiência. Por que não fizeram antes se todos estavam no governo Lula? Porque Lula disse que tudo se resolveria com o PAC, no qual destinou uns R$ 5 bilhões à Infraero, para os 12 aeroportos da Copa.
Reparem como não fazia sentido além da propaganda. Só para a privatização de Guarulhos, o governo exigiu da nova concessionária compromisso de investimentos de… R$ 5 bilhões. Para Brasília, mais de R$ 8 bilhões.
Resumo da ópera: Lula é responsável por um atraso de cinco anos nessa privatização.
Greve de policiais ─ Tem ainda uma outra conta para o ex-presidente, a falta de legislação regulando greves de funcionários e de policiais, como essa que assombra a Bahia. Entre o final de 2006 e o início de 2007, houve uma sequência de greves de servidores públicos da educação, previdência, meio ambiente e também da polícia.
O impacto foi tão negativo que até o presidente Lula reclamou. Lembram-se? Disse que funcionário público em greve parecia, na verdade, estar em férias, pois não tinha desconto dos dias parados. Encarregou o então ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de preparar um projeto regulamentando o tema. O ministro chegou a anunciar os princípios da nova legislação.
Por exemplo: servidor armado não pode fazer greve; greves têm de ser aprovadas em assembleias com pelo menos dois terços da categoria (a greve dos PMs da Bahia seria ilegal nos dois quesitos); e servidor em greve não recebe salário. Onde está o projeto? Sumiu. Os sindicatos de funcionários não gostaram, Lula esqueceu. É sempre difícil saber como as coisas teriam se passado se outras providências tivessem sido tomadas.
Mas o olhar em retrospectiva mostra, sim, o que deixou de ser feito.
por Bolívar Lamounier
Caminhando para o seu décimo ano de poder na esfera federal, o PT continua muito aquém do que deveria ser, a meu juízo, para merecer as imensas votações que têm recebido.
Para um partido que sabidamente aposta num projeto de longo prazo – e periga realmente de permanecer no poder por mais tempo -, ainda lhe falta amadurecimento intelectual e político, competência técnica e senso de responsabilidade.
Essa é a minha opinião; e quem de vez em quando me lê, petista ou não petista, sabe que não há novidade alguma no que estou dizendo. Faz um bom tempo que venho dizendo isso.
Posso imaginar alguns leitores já de dedo em riste: “e o PSDB? Por que não fala do PSDB?” Eu poderia responder essa pergunta de várias formas, mas nenhuma delas tem realmente a ver com o que me ocorre escrever hoje.
O que eu quero dizer é muito simples. Para mim, o PT no poder vem tendo um desempenho horrível, mas eu ainda prefiro esse PT atual ao dos velhos tempos. Sim, eu sei: o PT atual não separa os patrimônios público e privado com o rigor que a Constituição prescreve; não joga o jogo democrático com a lealdade e a responsabilidade desejáveis, e não se notabiliza pela coerência em relação aos princípios que costumava proclamar. Mesmo assim, como comecei a dizer, esse PT me parece melhor , muito melhor – por razões que exporei em seguida -, que o PT das catacumbas.
Como preferir o PT atual àquele dos primórdios, que se proclamava tão puro de intenções, que prometia ouvir todo mundo o tempo todo sobre todos os assuntos, enfim aquele que semeou tantas esperanças?
Ora, exatamente porque aquele PT original só fazia isso: apresentava-se como um paladino da moral e da justiça, esparramava uma infinidade de tolices sobre “democracia direta” pelo Brasil afora, e despertava esperanças. Milhões de adeptos e eleitores não entenderam direito o script, mas o lance era converter toda aquela pureza e todas aquelas esperanças em capital político.
Para efeito de raciocínio, podemos dizer que o capital político era de três tipos, mas é óbvio que os três se interligavam e se alimentavam mutuamente : (1) capital sob a forma de acesso às comunicações para criticar a “elite” – ou seja, para dizer que todos os outros (políticos, empresários, jornais etc) compunham uma elite compacta, gananciosa, e era a única responsável pelas mazelas sociais, educacionais etc do Brasil; (2) capital eleitoral, ou seja, votos na urna e uma vasta mão-de-obra: a famosa “militância”; (3) capital sob a forma de financiamento ao partido.
Faço aqui uma pausa, pois já percebo a impaciência de alguns leitores. Estou então dizendo que tudo foi uma grande farsa? Que os fundadores e dirigentes do PT se valeram da credulidade de milhões de brasileiros? Que lhes venderam essa empulhação sem tamanho?
É claro que não. De modo algum. Se eu pensasse isso, que sentido haveria em contrapor o PT malandro dos tempos atuais com o PT “puro” de priscas eras? Do que os articuladores e estrategistas pensaram, eu não faço a menor idéia. O que afirmo sem pestanejar é que muita gente se deixou levar por aquele clima de cristianismo primitivo, acreditando ver pureza e ética onde a superficialidade e o maniqueísmo eram os produtos de fato abundantes. Se me perguntarem, então, por que o PT antigo me parece pior que o atual, eu respondo rápido e rasteiro: porque prefiro a realidade, por complexa e dura que ela seja, às conhecidas fantasias do romantismo político. Porque sempre preferi Flaubert, ou Machado, ou Nelson Rodrigues a Madame Deli.
Acabei me estendendo e não expliquei o por que deste post. Por que cargas d’água, justo hoje, encasquetei de pensar sobre o PT?
Por uma, ou melhor, por três razões muito simples, coincidentemente estampadas ao mesmo tempo nos jornais de hoje.
Lá em cima eu expressei um certo desgosto ante o modo petista de lidar com a separação entre os patrimônios público e privado, e logo hoje a imprensa noticia a posse do novo ministro das Cidades. Eu suponho que a presidente Dilma, que já se viu forçada a demitir mais de meia dúzia por corrupção, deve ter examinado com atenção as credenciais do mais novo integrante de sua equipe de governo.
Eu disse também que o PT não parece compreender direito certos requisitos de lealdade e responsabilidade que a vida pública envolve. Poucos dias atrás, quando da ação de reintegração de posse na favela Pinheirinho, um integrante da legenda que no momento ocupa um cargo de alta responsabilidade se valeu descaradamente dos recursos de comunicação do Planalto para tentar solapar a autoridade do governador de São Paulo. Diante dos acontecimentos ora em curso na Bahia – estado governado pelo PT -, o referido personagem faria bem em meditar aonde o país chegaria se todos os protagonistas políticos optassem por se comportar como ele diante de situações de tal gravidade.
Eu também assinalei que os petistas, uma vez chegados ao governo, não se notabilizam por comportamentos notavelmente coerentes com os princípios que costumavam proclamar. Ainda bem, isso é ótimo – me permito agora acrescentar. Foi o que eu disse em 2003, quando o recém-eleito presidente Lula descartou pura e simplesmente os seus resquícios de romantismo econômico e deu continuidade às políticas do presidente Fernando Henrique. E em nome de quê eu haveria de negar o meu aplauso à incoerência que se materializou hoje?
Hoje, com efeito, os jornais fizeram a cobertura do leilão de privatização de três aeroportos. Um sucesso, sem dúvida, não só pelos valores envolvidos, mas também pela razoável confiança com que a Fifa e o organismo brasileiro responsável pela organização da Copa do Mundo passam a trabalhar a partir deste momento. Mesmo se ficarem aquém do ideal, as condições aeroportuárias de 2014 já começam a sair da condição de fiasco anunciado em que se encontravam.
Não me surpreenderei se algum petista retardatário se referir à presidente Dilma como uma “vendida ao neoliberalismo”, mas, convenhamos, resquícios ideológicos, um aqui, outro ali, sempre ficam. Nenhum processo político zera completamente a pauta – e me parece muito bom que assim seja.
Eis, portanto, o resumo da ópera: (1) só por ser parte da realidade e não da fantasia, o PT atual já apresentava melhoras sensíveis em relação ao seu antecedente romântico; (2) mas a realidade política e econômica vem-lhe oferecendo numerosos temas para reflexão e chances de amadurecimento. Ele só não as aproveitará plenamente se não quiser.